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É procurador do Estado do Espírito Santo, professor de Direito do Consumidor e mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP

As denúncias de venda de decisões no STJ e a crise do Judiciário

A alta judicialização, associada ao crescente número de processos, tem levado à ampliação desmedida dos gabinetes de ministros e desembargadores, que muitas vezes contam com mais de 40 servidores e assessores

  • Leonardo Garcia É procurador do Estado do Espírito Santo, professor de Direito do Consumidor e mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP
Publicado em 08/10/2024 às 12h14

As recentes investigações envolvendo assessores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a suposta venda de sentenças revelam a existência de uma crise institucional que reflete um problema mais amplo no Poder Judiciário brasileiro.

A alta judicialização, associada ao crescente número de processos, tem levado à ampliação desmedida dos gabinetes de ministros e desembargadores, que muitas vezes contam com mais de 40 servidores e assessores. Esse inchaço estrutural, por sua vez, resulta em um sistema que perde gradualmente o controle ético e jurídico sobre o trâmite processual, criando um ambiente propício para a ocorrência de irregularidades e fraudes, como demonstrado pelas apurações em andamento.

A falta de supervisão adequada sobre o volume excessivo de processos e a presença de um número elevado de assessores geram um descompasso na administração judiciária, o que pode comprometer a qualidade e a integridade das decisões proferidas.

Juízes e ministros, diante do número crescente de ações, não têm o tempo necessário para se debruçar sobre cada processo como deveriam, levando a uma aplicação mecânica de precedentes e, muitas vezes, à utilização inadequada do distinguish — instituto que deveria ser utilizado para diferenciar casos que, embora pareçam semelhantes, têm nuances que demandam soluções específicas. A consequência disso é a proliferação de decisões equivocadas e, por vezes, contraditórias, o que mina a credibilidade do Judiciário e reforça a percepção de que o sistema é suscetível a manipulações.

O problema se agrava pelo fato de o Judiciário brasileiro ser um dos mais caros do mundo, com um orçamento que representa cerca de 1,6% do PIB nacional, enquanto a média global é de apenas 0,3% a 0,4%. Esse custo elevado, suportado pela sociedade, é reflexo da estrutura gigantesca do sistema, que inclui um número elevado de magistrados, servidores e assessores.

Paradoxalmente, mesmo com todo esse custo, a eficiência do Judiciário brasileiro é questionada, principalmente devido ao tempo de tramitação dos processos e à falta de mecanismos eficazes para garantir a segurança jurídica e a qualidade das decisões.

O aumento exponencial de ações de consumo e ações contra o Estado contribui para sobrecarregar o sistema, e grande parte da judicialização se dá em razão da ineficiência administrativa, do descumprimento de normas por fornecedores e pela falta de mediação extrajudicial eficaz.

Edifício-sede do STJ, em Brasília
Edifício-sede do STJ, em Brasília. Crédito: DIvulgação/STJ

Esse cenário é agravado pelo fato de que o Judiciário acaba se tornando o local preferido para a resolução desses conflitos, em vez de se buscar soluções fora do âmbito judicial. Tal fenômeno decorre, em parte, do fato de que sanções aplicadas a fornecedores não têm se mostrado suficientemente dissuasivas, fazendo com que práticas abusivas sejam mais vantajosas financeiramente para as empresas, que preferem prolongar o litígio judicial a resolver as demandas de forma eficiente no âmbito administrativo.

Essa prática, conhecida como “ilícito lucrativo”, faz com que os fornecedores se beneficiem da morosidade judicial, tornando vantajoso postergar a resolução de conflitos, mesmo quando estão em posição desfavorável.

A utilização do Judiciário como um mecanismo de protelação demonstra que as sanções atualmente previstas não são suficientes para inibir práticas abusivas, incentivando o uso excessivo do aparato judicial como estratégia de negócio.

Nesse contexto, é urgente pensar em formas de desjudicialização, com a implementação de políticas públicas que privilegiem a resolução de conflitos fora do Judiciário, como a mediação e a conciliação, além de reforçar a atuação dos órgãos administrativos de defesa do consumidor.

A gratuidade de acesso aos Juizados Especiais, por exemplo, deveria ser revista. A ideia de gratuidade irrestrita tem levado ao ajuizamento de um grande número de ações, inclusive por servidores públicos que não se enquadram no perfil de hipossuficiência econômica e que utilizam o sistema para litigar reiteradamente contra os entes públicos.

Muitos desses servidores, ao perceberem a recusa dos pedidos de gratuidade nas instâncias recursais, desistem das ações, gerando desperdício de tempo e recursos públicos. Um modelo mais criterioso, similar ao aplicado na Justiça Comum, em que a gratuidade só é concedida mediante comprovação de necessidade, poderia reduzir o número de processos e diminuir o ônus financeiro imposto à sociedade.

É necessário salientar que, apesar das críticas ao modelo atual, o Judiciário brasileiro conta com magistrados de excelência, altamente capacitados e comprometidos com a prestação jurisdicional. Entretanto, o volume excessivo de processos torna o trabalho dos juízes humanamente inviável, levando à perda de qualidade das decisões.

Mesmo os magistrados mais dedicados enfrentam dificuldades para se aprofundar em cada processo, sendo obrigados a delegar análises complexas a assessores, o que muitas vezes resulta em decisões baseadas em uma visão superficial dos casos.

Essa situação desumana, em que juízes são forçados a lidar com um número excessivo de processos, não apenas prejudica a qualidade das decisões, mas também contribui para o desgaste dos próprios magistrados, afetando sua saúde mental e capacidade de trabalho.

Assim, é essencial repensar o modelo de justiça e a estrutura do Judiciário brasileiro, buscando um equilíbrio entre custos e eficiência, além de fortalecer mecanismos de controle interno que assegurem a integridade e a lisura no trâmite processual.

A criação de novas políticas de desjudicialização, a revisão da gratuidade nos Juizados Especiais e a imposição de sanções mais rigorosas aos fornecedores que se utilizam do Judiciário como um instrumento de manobra são passos fundamentais para restaurar a credibilidade do sistema e garantir que ele cumpra sua função de promover a justiça de forma eficiente e equânime.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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