Uma palavra mal colocada, uma foto fora do padrão, um comentário infeliz, um áudio vazado. Qualquer deslize é suficiente para um cancelamento no mundo digital. O antigo conceito de Aldeia Global, cunhado pelo teórico canadense da comunicação Marshall McLuhan na década de 60, evoluiu (ou a expressão correta seria “involuiu”?) para as Redes de Indignação estudadas pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, mais recentemente.
McLuhan profetizou que o surgimento de tecnologias da informação e da comunicação encurtariam as distâncias no mundo. Castells avaliou os movimentos de rede, que têm características similares em todo o mundo, formam-se a partir de ideologias e motivações diferentes e carregam consigo as especificidades da ausência de lideranças e da criação de espaço e tempo próprios.
Vivemos a era da comunicação horizontal: o presidente dos Estados Unidos e a dona Maria da periferia têm a mesma voz, embora talvez não com o mesmo peso, mas se fazem ouvir e ler pelo mundo todo. Essa vantagem dos tempos modernos carrega consigo problemas estruturais.
Na nova sociedade da informação, o fácil acesso ao conhecimento e às ferramentas de desenvolvimento pessoal provocados pela internet deram lugar à violência psicológica irrestrita. Para Freud, o psiquismo humano tende primariamente à satisfação pulsional, sem qualquer consideração por outros indivíduos.
A blogueira Gabriela Pugliesi foi cancelada por fazer uma festa durante a pandemia, quando muitos usavam da mesma prática. Alegação hipócrita (a nossa, é claro)? Em outro caso, uma estrangeira que morava no Brasil zombou de algumas de nossas tradições, como comer arroz e feijão todos os dias. O respeito à cultura de um país é sagrado e deve ser via de mão dupla: se não acatamos o direito de manifestação de um indivíduo, não podemos exigir que ele tenha a mesma visão de mundo que a nossa.
O “certo e errado” estabelecidos pela sociedade punitiva ganharam proporções absurdas. E abusivas. A verdade absoluta não existe. Somos nascidos e criados em famílias e culturas diversas. Mas o umbigo bem abaixo do nariz não nos permite enxergar as coisas com clareza. O certo e o errado são apenas modos diferentes de entender nossa relação com os outros, escreveu, brilhantemente José Saramago.
Mais recentemente, o caso das declarações sexistas do deputado estadual Arthur do Val, vazadas em áudios, provocaram um verdadeiro linchamento moral da figura pública dele. Perdeu a namorada e todos os espaços políticos que tinha. Os comentários sobre as mulheres ucranianas foram infelizes, e qualquer figura que que injurie, calunie, difame ou cometa qualquer outro crime, por menor que seja, precisa pagar por ele. À sociedade, por sua vez, não cabe o apedrejamento em praça pública virtual. Vamos voltar ao século passado?
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O sem-número de fatos, criados ou distorcidos, ganham, na imaginação do público crédulo, uma aparência de realidade incontestável, de fato consumado. É uma rouca voz solitária contra um coro de demônios microfonados. O assassinato de reputações nas redes sociais virou sinônimo de politicamente correto. Errado é quem não demoniza condutas no triste tribunal da inquisição da internet.
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