Lemos livros, fazemos cursos, contratamos coachs, vamos a psicólogos, devoramos artigos e até tentamos ensinar os nossos filhos sobre autorresponsabilidade, a mágica capacidade, quando na verdade deveria ser a óbvia, de responsabilizar-se por tudo que acontece na própria vida.
Talvez tanto esforço seja necessário porque a verdadeira autorresponsabilização, humilde, sensata, contextualizada e ponderada, é rara. Desde pequenos percebemos que é bem mais fácil culpar o outro, o irmão, o pai, a mãe, o amigo, o professor. E, assim, nossa incapacidade de responder pelo que fazemos, sem se vitimar, vai se consolidando pelas demais fases da vida, criando gerações não fortes e protegidas, mas fracas e inseguras.
Quando a crise de qualquer ordem vem, como uma pandemia, é ainda pior. Basta acessar as mídias sociais, após o decreto de nova quarentena, para ver uma imensidão de dedos apontados: é o político A ou B, é o governo, é o sistema, é o ônibus, é a escola, é o jovem, é o rico, é o comércio, é a igreja, é tudo, menos nós. Nós não erramos, no máximo, outros nos fazem errar. Nós não aglomeramos, não reunimos amigos, não fomos a festas, não saímos sem máscara, não ficamos na praia cheia, não visitamos familiares, não deixamos o filho passar a tarde na casa do amigo, não viajamos...
Sejamos sinceros: quem de nós pode dizer isso? Cansados, estressados, angustiados de tanto isolamento, uns mais outros menos, confusos ou convictos, seguros ou temerosos, diariamente ou só de vez em quando, por uma hora ou pela madrugada adentro, todos nós em alguma medida saímos da reclusão. Assumindo riscos, vestimos em parte ou totalmente a máscara do negacionismo da pandemia para ter algumas horas de alívio, respiro, contato, vida normal.
Não é e continuará não sendo simples para ninguém, mas deixar a autorresponsabilidade de lado também neste momento é no mínimo feio. E o mais triste, é inútil, pois enquanto achamos que o problema é somente do outro, não fazemos a nossa parte.
Sem querer fazer um trocadilho bobo ou muito menos deixar este texto confuso, talvez o próprio conceito de autorresponsabilidade propagado por aí tenha responsabilidade nesse sentido. Carregado de um individualismo egoísta que faz e acontece para seu próprio bem, prosperidade e poder, esse tipo de autorresponsabilidade conveniente, que beira a simples autoafirmação e positividade, não deixa espaço para a importância do comportamento individual para a sustentabilidade da coletividade. Coletividade, aliás, que pouco faz parte do entendimento de muitos de nós, seja por não nos sentirmos parte dela, seja por achar que ela só diz respeito à esfera de ação dos líderes políticos.
Longe de mim com esta reflexão querer anular qualquer responsabilidade dos diversos agentes públicos eleitos ou escolhidos, mas creio firmemente que quando cada cidadão tiver a integridade de autorresponsabilizar-se pelo que faz, na pandemia ou fora dela, pensando não só em si, mas também no coletivo, até as nossas cobranças por mais empenho e investimentos terão mais eco, pois serão mais legítimas e eficazes. Como li por aí, em um dos poucos posts mais sensatos do meu feed, como podemos culpar o vento pela desordem se nós deixamos as janelas abertas?
* Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta
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