Imagine um comerciante que, ao invés de somente reclamar da falta de segurança pública, decide agir: instala 200 câmeras pelas ruas do Centro de Vitória, forma uma rede de vigilância com outros e ainda compartilha imagens com a Guarda. Um verdadeiro “Vigilante do Centro”, sem capa, mas com cabos, DVR e espírito cívico. Até que um dia, alguém diz: “Calma lá, Sherlock, isso aí é função do Estado!”
Foi o que aconteceu com o Eugenio Martini — e não, ele não é personagem de um filme capixaba. É real. Depois de mais de 15 anos monitorando ruas por iniciativa própria (e, ao que tudo indica, de boa-fé), teve que desligar tudo por decisão judicial. A ação veio com base em princípios caros ao Estado Democrático de Direito: a proteção da privacidade, o monopólio estatal da segurança pública e, claro, a vedação à usurpação de função pública.
De um lado, temos o direito à privacidade, protegido pela Constituição (art. 5º, X) e pela LGPD. Ninguém quer ter sua imagem captada enquanto compra pão, pega o ônibus ou finge que está ocupado para não falar com quem quer que seja. E mais: a segurança pública é dever do Estado, e mesmo empresas de segurança privadas não podem atuar em espaços públicos sem autorização.
Do outro lado, temos a realidade do dia a dia: comerciantes cansados de esperar o Estado decidir se vai ou não aparecer com uma viatura. Eugenio e companhia criaram uma “segurança colaborativa”, na qual a cidadania quase virou política pública. É bonito? É. É legal? Nem tanto.
O problema está no vácuo jurídico: enquanto o Estado hesita e o cidadão tenta preencher esse vazio, surgem dilemas complexos. A fronteira entre a colaboração e a usurpação de função pública é tênue. Intenções nobres não revogam o ordenamento jurídico — como diria qualquer professor de Penal 1, “dolo ou culpa, ainda há tipicidade”.
Mas convenhamos: há também um toque de ironia nisso tudo. Em tempos em que o poder público usa câmeras inteligentes para multar até pensamento em alta velocidade, um cidadão ser punido por instalar câmeras para evitar crimes soa quase como uma piada de gosto duvidoso. Por outro lado, todo esse "acervo" de filmagens nas mãos de alguém sem os compromissos legais ou prerrogativas do Estado pode ser, no mínimo, desconfortável para qualquer pessoa filmada.
A solução? O próprio Eugenio já aponta uma saída interessante: parcerias institucionais, com regramento, transparência, pilaretes autorizados e guarda compartilhada — não só das imagens, mas das responsabilidades. Ou seja, trazer o cidadão para a engrenagem do Estado, mas com crachá, senha e regimento interno.
Como olvidar da figura do "flanelinha" no Brasil? Estaciona-se o carro em lugar ermo lá vem o dito cujo: "Tô vigiando... fica tranquilo…" Uai, alguém pediu alguma coisa a ele? Por outro lado é comum que esse "contrato" tácito seja respondido com um "joia" do proprietário do carro que, diante da ausência do Estado, só lhe resta assumir um custo dobrado pela segurança de seu patrimônio - e, quem sabe, até da família.

As autoridades públicas devem conclamar um amplo debate sobre o tema a fim de que todo o esforço (e dinheiro) empreendido pelo Sr. Martini, bem como por outros cidadãos com boas intenções (e projetos similares), seja acolhido por aqueles que têm como função principal as obrigações públicas.
No fim, esse episódio não é só sobre câmeras. É sobre os limites da cidadania ativa, sobre um Estado que não pode ser substituído, mas também não pode se ausentar. É sobre um cidadão que tentou transformar a omissão estatal em ação comunitária — e que, por isso, merece mais do que um mandado de retirada: merece um convite à mesa, com contrato, supervisão e, quem sabe, um cafezinho oferecido por uma câmera que grava… mas com consentimento!
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