Entre os desafios que movem a reforma tributária está o de erguer um sistema inspirado pelos ideais de justiça fiscal e de equidade, em contraposição ao modelo atual, consensualmente reconhecido como um dos mais regressivos do mundo. A opção brasileira por eleger o consumo como a sua principal base de materialidade tributável – a qual responde por aproximadamente 49,7% do total da arrecadação – conforma um modelo em que os mais pobres pagam mais tributos, proporcionalmente à sua renda, do que os mais ricos, fator que agrava desequilíbrios socioeconômicos.
Esse quadro impõe, com efeito, a criação de mecanismos que suavizem tais disfunções e assegurem largas margens de progressividade do sistema tributário, de modo a compatibilizá-lo com os desígnios constitucionais de erradicação da pobreza e de redução das desigualdades sociais e regionais.
Nesse plano, um dos instrumentos idealizados nas propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional é a devolução, às famílias de baixa renda, do imposto pago na compra de produtos essenciais, em fórmula assemelhada a um “cashback tributário”.
Trata-se de uma ferramenta de política distributiva, cujo objetivo consiste em garantir às populações menos favorecidas o acesso aos produtos de primeira necessidade. Seus impactos são relevantes: recente pesquisa realizada pela UFMG estimou que a devolução do imposto beneficiará cerca de 72,4 milhões de brasileiros, por meio da restituição de R$ 9,8 bilhões; entre os beneficiários, é forte a presença de grupos sociais vulneráveis: 72% são negros e 57% mulheres. Daí porque epitetada a medida, no debate público, como “cashback do povo”.
Se aprovada, a proposta não representará, porém, uma novidade. Diversos países que implementaram o modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) nas últimas décadas instituíram o mecanismo de devolução do tributo, o qual se tem revelado, na experiência internacional, estratégia mais eficiente do que a atenuação ou mesmo a neutralização da tributação sobre produtos essenciais.
Observou-se em inúmeros países, sobretudo na Europa, que a redução de alíquotas e a concessão de isenções provocaram pouco ou nenhum impacto, por exemplo, nos preços dos alimentos, a evidenciar que as desonerações foram incorporadas, quase que em sua totalidade, às margens de lucro, sem satisfazer os fins colimados pelas políticas distributivas.
Além disso, da redução linear da carga tributária incidente sobre mercadorias de primeira necessidade resultaram severos impactos arrecadatórios, haja vista que produtos essenciais, como os itens da cesta básica, são mais consumidos, em números absolutos (preços e volume), pelas classes mais abastadas, que acabam indevidamente beneficiadas pela desoneração, multiplicando faixas de consumo por pessoas de alta renda que não geram qualquer recolhimento aos cofres públicos.
Desse modo, a pretexto de viabilizar uma tributação mais democrática, a ampla desoneração dos bens indispensáveis distorce um primado basilar da justiça fiscal ao permitir que “quem tem mais pague menos”, em subversão ao postulado constitucional da capacidade contributiva.
Nesse sentido, o cashback, segundo recomendam a literatura especializada e as melhores práticas internacionais, mostra-se ferramenta mais apta a potencializar a índole progressiva do sistema tributário sem o efeito colateral do subfinanciamento do Estado.
As formas de sua implementação são variáveis e foram, por isso, reservadas às linhas mais pormenorizadas da legislação complementar. Cogita-se desde descontos automáticos aplicados no ato da compra até o ressarcimento propriamente dito do valor do imposto, a serem operacionalizados por intermédio de cadastros públicos que permitam identificar o adquirente segundo os critérios definidores de “baixa renda”.
Em todo caso, o tempo constituirá fator decisivo para o êxito da sistemática projetada: é preciso assegurar que as devoluções se processem com celeridade, em ritmo quase imediato, sob pena de prejudicar o fluxo de caixa das famílias.
O “cashback do povo”, nesse cenário, se bem executado, desponta como promissora alternativa para fomentar a justiça fiscal e investir a ordem tributária de instrumentos de combate às desigualdades sociais, a fim de conectá-la com o princípio da dignidade humana, enquanto fundamento primário do Estado Democrático de Direito.
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