Ao longo da história, intelectuais de diferentes correntes de pensamento – como Foucault, Paulo Freire, Bakhtin e Pêcheux – apontaram que o campo discursivo é um importante palco simbólico para os diversos antagonismos sociais. Isso significa que o emprego frequente de determinadas palavras e expressões não são meras escolhas linguísticas, mas imposições ideológicas, que refletem relações de poder.
Por exemplo, o adjetivo “civilizado”, em referência ao colonizador europeu, utilizado em contraposição ao termo “bárbaro”, que indica os povos colonizados, foi uma maneira de legitimar lexicalmente a dominação imposta pela Europa ao restante do planeta.
Pois bem, essa prática de disputa discursiva não é diferente ao pensarmos nos desdobramentos da principal pauta da agenda pública global dos últimos meses: a pandemia de Covid-19. Com a chegada do coronavírus ao Brasil, os chamados “negacionistas” – indivíduos que negam a gravidade da pandemia e espalham teorias da conspiração nas redes sociais – tentaram emplacar o termo “vírus chinês” para se referir ao parasita causador da Covid-19.
A ideologia por trás dessa prática era culpar o governo chinês pelo coronavírus ou então corroborar a teoria da conspiração baseada na ideia de que Pequim teria criado o coronavírus para dominar a economia global. Felizmente, lembrando uma expressão popular, tal estratégia discursiva “deu com os burros n'água”, ficando restrita aos negacionistas.
Perdida a batalha lexical pela nomenclatura do coronavírus, surgiu uma nova frente: deslegitimar as vacinas contra a Covid-19, sobretudo a CoronaVac, desenvolvida pela companhia biofarmacêutica chinesa Sinovac Biotech em parceria com o Instituto Butantan. Desse modo, foram cunhados os termos “vachina” e “vacina do Dória”. O objetivo era negar qualquer eficácia e sustentar todo tipo de teoria da conspiração em relação à CoronaVac.
É óbvio que seria extremamente ingênuo acreditar que João Dória não pretende tirar dividendos eleitorais com a CoronaVac. No entanto, esta vacina não foi elaborada pelo governador de São Paulo, mas por instituições científicas com décadas de experiência na área. É controverso pensar que Sinovac Biotech e Instituto Butantan produziriam uma vacina ineficiente, colocando em xeque décadas de trabalho, apenas por uma questão de guerra política.
Evidentemente, como qualquer outro setor de nossa sociedade, o campo científico não é neutro. Bruno Latour e Thomas Kuhn já nos alertavam que interesses econômicos, vaidades acadêmicas e aspirações políticas também perpassam as práticas científicas. Porém, contrapor descobertas da ciência com achismos, áudios de WhatsApp ou interpretação equivocada de dados não é um caminho intelectualmente indicado, é passar atestado de ignorância.
Em suma, pior do que a crença positivista cega na ciência, é a cegueira do discurso anticiência, que, no atual contexto, além de representar grave déficit cognitivo, significa um problema de saúde pública.
O autor é doutorando em Geografia (UFSC), mestre em Geografia (UFSJ) e articulista do Observatório da Imprensa.
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