Recentemente, a fala do presidente e de outros dirigentes do Conselho Federal de Medicina (CFM) em audiência no Senado da República sobre a criminalização do aborto em casos de estupro com gestação acima de 22 semanas gerou grande controvérsia. Esse posicionamento traz à tona uma questão crucial: há limites para a autonomia dos dirigentes do CFM ao opinar sobre temas que fogem às suas competências técnicas e legais? Analisemos essa problemática.
Primeiramente, é imperativo reconhecer que a instituição CFM possui um papel essencial na regulamentação e orientação da prática médica no Brasil. Contudo, ao opinar sobre a criminalização de vítimas de estupro que buscam o aborto, o dirigente do Conselho extrapola suas prerrogativas.
Essa questão está firmemente alicerçada na Constituição Federal e no Código Penal brasileiro, que asseguram às mulheres vítimas de estupro o direito ao aborto legal. Qualquer tentativa de normatização infralegal não se enquadra nas competências do CFM, e sua atuação no legislativo deve levar em conta posições orientadas por evidências e consensos.
Além disso, ao propor a criminalização de médicos que atuam em conformidade com a legislação brasileira e as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), os dirigentes do CFM desconsideram seu papel de garantir a ética e a autonomia médica.
A legislação e a jurisprudência vigentes permitem o aborto em casos de estupro, risco de vida para a mulher e anencefalia do feto. Médicos que realizam tais procedimentos estão exercendo seu dever profissional e ético, assegurando direitos fundamentais às suas pacientes.
Outro ponto preocupante é a orientação do CFM por princípios de obscurantismo religioso, contrariando a própria Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), que condena o chamado "PL do Estuprador". A Febrasgo, baseada em evidências científicas e preocupada com a saúde integral da mulher, se posiciona contra qualquer medida que vise restringir ainda mais o direito ao aborto em casos de violência sexual.
A instrumentalização do CFM para apoiar posições que só encontram paralelo em regimes teocráticos é um desvio alarmante de sua função original. O Brasil é um Estado laico e, como tal, suas instituições devem operar à luz da razão e da ciência, não sob a influência de dogmas religiosos ou extremismos políticos e partidários.
Essa interferência em temas de saúde pública e direitos humanos não apenas viola a ética médica, mas também fragiliza a confiança da população nas instituições responsáveis pela regulação da prática médica.
Portanto, é evidente que há limites claros para a autonomia dos dirigentes do CFM ao opinar sobre questões que excedem suas atribuições. O respeito à Constituição e aos direitos humanos deve ser intransigente, e a função do CFM deve se restringir à orientação técnica e ética da prática médica, sem adentrar no campo das opiniões legislativas de corte religioso e conservador. Só assim poderemos assegurar uma prática médica justa, ética e voltada ao bem-estar da população, em consonância com os preceitos de um Estado democrático e laico.
O CFM deve estar dedicado à medicina brasileira. As pautas extremistas e radicais são características da agenda política dos partidos que polarizam a política e a sociedade, não dos livros de medicina ou de saúde coletiva.
Se qualquer membro da atual direção do CFM desejar propor criminalizar com cadeia mulheres e crianças vítimas de estupro, filiem-se a um partido político, disputem as eleições e, caso eleitos, escolham passar vergonha sozinhos no Congresso Nacional, mas não em nosso nome, em nome da medicina brasileira.
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