No mês de agosto deste ano, foi entregue uma importante obra de mobilidade urbana para a população capixaba, a Ciclovia da Vida Detinha Son, que leva o nome da cicloativista falecida em 2016, vítima de um acidente de trânsito. Com uma estrutura fixada à Terceira Ponte, ponte que liga duas importantes cidades do Espírito Santo, a capital Vitória e a vizinha Vila Velha, ela tem servido como uma forma de contenção de suicídios e reduziu a zero o número neste local, desde a sua implementação, segundo a concessionária Rodosol, responsável pela manutenção da ponte.
Essa ciclovia, efeito de uma reivindicação antiga do cicloativismo capixaba, como os movimentos conhecidos como “Bicicletadas”, é uma importante conexão para nós, ciclistas da Grande Vitória, tendo em vista a sua estratégica localização. Antes, para chegar a Vila Velha ou Vitória, precisávamos nos deslocar, necessariamente, em direção ao Centro de Vitória para atravessar a ponte Florentino Avidos ou utilizar o ônibus especial que transporta bicicletas, o GV Bike, na Terceira Ponte, uma vez que a passagem de ciclistas era proibida.
Apesar de importante medida para garantir o direito de transitar neste local, este ônibus nos colocava muitas vezes em um imbróglio de (i)mobilidade, que é estar parados com nossas magrelas no engarrafamento dentro de um ônibus e ao mesmo tempo ter que pagar para usar um meio de transporte que dispensa o pedágio.
Quem circula nas vias do Estado por meio das bicicletas sabe dos riscos envolvidos, pois não é garantido uma infraestrutura cicloviária que promova a mobilidade e a segurança necessária. Atualmente, segundo os dados dos principais municípios da Grande Vitória (Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica), há aproximadamente 204 quilômetros de ciclovias/ ciclofaixas, o que é bem pouco se comparado, em números absolutos, às cidades de grande porte, como São Paulo (689,1 km), Brasília (636,89 km) e Rio de Janeiro (487 km), segundo levantamento realizado pelo Aliança Bike.
Diante desta lacuna, somos constantemente alvos de desrespeito dos motoristas, o que faz com que muitas vezes quase sejamos atropelados. Eu mesmo já perdi a conta de quantas vezes quase fui por motoristas dos ônibus do Sistema Transcol, mesmo transitando da maneira em que prevê o Código de Trânsito: na mão dos veículos e nos bordos da pista, na ausência de ciclovia ou ciclofaixa.
O artigo 201 do Código de Trânsito Brasileiro, que obriga o motorista a passar no mínimo a 1,5 metros de distância de ciclistas que estejam na rua, de forma geral, não é respeitado pelo motorista capixaba, como se aqui não fosse um território em que ele valesse. Não é à toa que, segundo os dados do Observatório do Trânsito do Detran-ES, no Estado do Espírito Santo o número de acidentes envolvendo ciclistas entre os anos de 2019 a 2022 chegou a 3.391, o que dá uma média de 2 acidentes por dia, e o número de ciclistas mortos foi de 104, de 2019 a 2021, segundo o Ministério da Saúde (Datasus).
Tal panorama nos faz pensar sobre como a cidade, no final das contas, é construída para os carros e não para as pessoas e, nesse sentido, a problemática não se refere apenas à questão da mobilidade urbana, mas também à da saúde, em específico à da saúde mental de uma população já adoecida psiquicamente. Uma pesquisa feita na Europa com mais de 3,5 mil participantes, pelo Instituto de Saúde Global Barcelona (ISGlobal), mostrou que o uso desse modal de transporte está associado a um maior benefício para a saúde em comparação aos outros. Foi constatado pelos participantes ciclistas efeitos benéficos para o seu bem estar, tais como uma boa autopercepção de saúde, menor estresse e mais vitalidade, além de seu uso ser associado a um menor sentimento de solidão.
A alternativa que esse modo de transporte ativo oferece de experienciar a cidade sobre duas rodas não promove apenas uma maior independência e mobilidade, mas também um outro vínculo do sujeito com o território e por si só se configura como uma estratégia importante de estabelecimento de relações mais cuidadosas na cidade.
Um levantamento do total de viagens realizadas por meios de transporte feito pela Associação Nacional de Transportes Públicos constatou que as realizadas por bicicletas, em cidades de 250 a 500 mil habitantes, como Vitória e Vila Velha, no ano de 2018, chegaram a apenas 3%, o que demonstra, considerando também que Vitória é a capital que proporcionalmente tem mais bicicleta por habitante (23 para cada 100 pessoas), segundo estimativa realizada em 2017 e 2018 pelo Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana, que ainda há muita potencialidade para as pessoas usarem esse meio de locomoção no seu dia a dia.
Esta escolha envolve muitos aspectos e a opção da bicicleta traz benefícios surpreendentes para a cidade como um todo: menos poluição, engarrafamento e estresse, e mais qualidade de vida e interação humana. Por isso, é necessário que haja incentivo real e contínuo por parte do poder público na garantia de segurança para quem faz essa escolha e que os motoristas sejam sempre lembrados, por meio de ações educativas e fiscalizatórias, que a prioridade de proteção no trânsito deve ser dada ao mais frágil e que 1,5 metros de distância não é opcional, é obrigatório.
As ações do poder público relacionadas à mobilidade precisam ocorrer de uma maneira mais contundente, ampliando a cobertura de ciclovia e ciclofaixa nas vias, de modo que incluam avenidas que não têm tanta visibilidade como a Terceira Ponte, mas que são muito utilizadas pelo ciclista trabalhador, como a perigosa Av. Maruípe, em Vitória, e a Av. Carlos Lindenberg, em Vila Velha.
Com isso, além de promoverem uma segurança para o ciclista trafegar, estimulando mais pessoas a usarem esse meio de transporte, estarão promovendo hábitos saudáveis e favorecendo a saúde mental da população. Ruas com menos carros e mais respeito é o horizonte que muitos países do norte global já veem como uma necessidade e que gostaríamos de ver quando pedalamos, para quem sabe assim não sermos mais um número na lista de acidentados ou de estressados.
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