O ano era 2002, a corrida eleitoral estava a todo vapor e a linha de chegada seria, pela primeira vez, ultrapassada pelo candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luís Inácio Lula da Silva. Lula, após sucessivas derrotas nos pleitos anteriores, percebeu que faltava calibrar o seu discurso e movimentar em seu xadrez político as torres do mercado brasileiro a seu favor. Dois anos antes, em dezembro de 2000, o empresário e senador José Alencar, a fim de celebrar as conquistas da sua duradoura vida profissional no setor privado, realizou uma festa em Belo Horizonte, a qual vários políticos compareceram, entre eles o já cotado pelo PT ao Planalto, Lula.
Defensor ferrenho de uma política econômica pró-mercado, como o manejo da taxa básica de juros para criação de um cenário favorável ao empresariado, Alencar tinha bom trânsito com todas as alas ideológicas dentro do Parlamento. E naquela festa de celebração dos bons frutos colhidos de sua carreira empresarial, o senador manteve um diálogo profícuo com o candidato petista, que resultou na célebre frase que o petista endereçaria a José Dirceu, ao final do evento: “encontrei meu vice!”
De mãos dadas com o mercado, Lula não só subiu a rampa do Palácio do Planalto com um setor privado amansado, em janeiro de 2003, como repetiu o mesmo feito em 2007, ao lado de seu vice, em nada proletário. A missiva decisiva ao capital privado brasileiro veio em junho de 2002, quando o candidato selou uma aliança capaz de afastar os ruídos remanescentes dentro do setor, carimbando a sua entrada pelas portas de Brasília por dois mandatos: a “Carta ao Povo Brasileiro”, que poderia muito bem ser renomeada como “Carta ao (restante do) Povo Brasileiro”, afinal àquela altura Lula já havia ganhado as massas.
Entre críticas ao ciclo econômico da década de 90, Lula faz um aceno ao mercado nas linhas e entrelinhas da carta. Já no primeiro parágrafo, fala em mudança, coloca o verbo “crescer” antes de “incluir”, para com isso “pacificar”. Menciona, antes mesmo da almejada justiça social, a conquista do desenvolvimento econômico. Nos parágrafos seguintes, “decepção com resultados”, “a economia não cresceu”, “estagnação”, “colapso econômico”, “voltar a crescer, gerar empregos”, “parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto”, “vasta coalizão”, “modernizem o país”, “mais competitivo no mercado internacional”, “reforma tributária, previdenciária e trabalhista”, “transição” e tantas outras expressões soaram como música aos ouvidos outrora quase surdos do empresariado à plataforma petista.
Hoje, num país afundado em crise sanitária e econômica, com o seu retorno para o picadeiro político e à semelhança de 2002, Lula volta a acenar para o mercado, mirando o trajeto eleitoral até outubro de 2022. Em entrevista a um de seus críticos mais contundentes, Reinaldo Azevedo, em 1º de abril deste ano, o petista respondeu sobre as possibilidades de privatização de algumas empresas estatais, e como num déjà-vu, abriu um canal de diálogo com o mercado, setor que vem se frustrando com a pauta econômica “neoliberal” prometida por Jair Bolsonaro.
Lula respondeu na ocasião que empresas públicas como a Caixa Econômica Federal e a Eletrobras poderiam muito bem tornarem-se sociedades de economia mista, isto é, mantendo o controle acionário com o Estado, mas abrindo o restante do capital ao setor privado. A fala não foi nada despretensiosa. O possível presidenciável provoca reminiscências no mercado, sobre a aliança firmada e reiterada décadas atrás, quando o Brasil ainda figurava como uma das dez maiores economias do mundo e em ascensão.
Lula conhece a política brasileira como a palma de sua mão, sabe que nem sempre o discurso político será concretizado na prática, mas também sabe que o que muitas vezes garante uma vantagem competitiva é sentar-se com o suposto inimigo e aproximá-lo do seu modus operandi. Nisso e em quase tudo, o ex-presidente dissocia-se do atual, pois traquejo político é uma arma que Bolsonaro desconhece. Para 2022, resta saber se os acenos continuarão a florescer ou se o mercado primeiro se bandeará para o emergente centro “Frankenstein” que tem se construído, com retalhos que poderão vir do DEM ao PDT.
Uma coisa é certa: Lula não é o alterego de Bolsonaro, porém de ambos o Brasil pode esperar algo próximo do que já conhece. Pelo caminho do meio, ventila-se um centro retalhado, com velhos nomes, mas com novos acordos. O ano de 2018, porém, nos mostrou a duras penas que nem sempre o que é novo é o melhor para o país. Enquanto isso, Lula segue de máscara, mexendo as torres e piscando disfarçadamente para o mercado.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.