Em 2020, no Enem, 28 redações tiraram nota mil; em 2021, 22; em 2022, 18; em 2023, 60; em 2024, apenas 12. Em apenas um ano, saímos de um número relativamente grande (60) para o menor (12) dos últimos cinco anos. Como explicar essa variação tão expressiva? Os alunos desaprenderam? A banca examinadora do Enem mudou os critérios de correção? Alunos, pais, professores, colégios, imprensa, todo mundo gostaria de saber a resposta.
Certamente alguém gostaria de que outras perguntas fossem feitas: “Por que a redação gera tanta euforia, ansiedade e expectativa?”, “Como se preparar para a redação do Enem com mais confiança e segurança?”, “Se os critérios (competências) são os mesmos, por que em 2014 foram 250 redações nota 100 e em 2024 apenas 12?”
Em meio a essa miríade de questionamentos, três pontos nucleares merecem ser analisados. O primeiro deles, talvez o mais importante, diz respeito ao modelo técnico de texto dissertativo-argumentativo que se foi criando até atingir seu ápice, em 2014, quando se chegou a 250 textos nota 1000.
O modelo estrutural e técnico do texto dissertativo-argumentativo modelo Enem que ensinamos e aprendemos hoje data mais ou menos desse período. São quatro parágrafos, com uma introdução com contextualização, tema e tese (5 a 6 linhas); um desenvolvimento com dois parágrafos e com quatro ou cinco períodos, com um repertório cada (8,9 linhas cada); uma conclusão com uma solução com cinco elementos (5, 6 linhas).
Soma-se a isso repertório repetitivo, vocabulário repetitivo, mecanismos de coesão repetitivos, além de estrutura e abordagem previsíveis (não por acaso a tese é mesma em vários textos nota 1000). Esse engessamento levou a um padrão de texto que se convencionou a ser chamado de texto dissertativo-argumentativo modelo Enem. Ao que tudo indica, as atuais bancas corretoras estão tentando desconstruir esse engessamento.
O segundo ponto decorre do primeiro. A partir do ano subsequente aos 250 textos nota 1000 – como ex-corretor, me lembro –, não raro, a cada ano, acrescentava-se uma novidade associada aos critérios de correção. Por exemplo, de repente, na Competência 4 (Coesão), o candidato só tiraria nota máxima (200 pontos) se houvesse dois ou mais operadores argumentativos, e apenas mecanismos de coesão clássicos.
Outro exemplo: na Competência 5 (Proposta de Intervenção), inicialmente bastava uma solução simples desenvolvida, com agente e ação para uma nota máxima. Hoje, para uma nota máxima, o candidato precisa elencar cinco elementos válidos (agente, ação, meio, efeito e detalhamento). Em todas as competências tem havido, paulatinamente, acréscimos de itens dificultando o alcance de uma nota máxima.
Como somente nos treinamentos dados aos corretores naquele ano é que esses acréscimos são conhecidos, não há como prevê-los. Sobre a edição 2024, por exemplo, na imprensa se divulgou a notícia de que uma das orientações dadas aos corretores dizia respeito ao uso do repertório: não poderia ser coringa, isto é, obrigatoriamente deveria estabelecer uma relação direta ao tema. Esse ponto parece ter sido a principal mudanças nos critérios de correção na edição 2024. No entanto, só se poderá confirmar isso, quando cada candidato tiver acesso ao espelho de sua redação. Nesse caso, em princípio, o candidato será apenado na Competência 2 (tema / tipo textual / repertório).
Por fim, não se pode ignorar a necessidade de distinção entre tema, assunto e palavras-chaves. Como nem sempre os professores fazem essa distinção, os alunos não sabem ao certo o que abordar no texto. Analisemos, sucintamente, o tema da última edição para ver se, de fato, é fácil compreender o tema solicitado.
“Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. O tema solicitado é que se expressa na totalidade das palavras-chave presentes na frase-temática. Transformando a frase-temática numa pergunta para a qual se espera uma resposta, chega-se ao tema propriamente dito. “Quais são/seriam os desafios/obstáculos para que não haja a valorização da herança africana no Brasil?” seria uma boa pergunta.
Grosso modo, caberia ao candidato citar os obstáculos (tese) e justificá-los (argumentos). Quais as palavras-chave desse tema? Aquilo que, por estar na frase-temática, não se pode deixar de mencionar: “desafios”, “valorização”, “herança africana” e “no Brasil”. Qualquer uma delas ignorada implica desconto na nota. É aqui que entra o tal “tangenciamento do tema”
E quanto ao assunto? Assunto é a principal palavra-chave. Dessa frase-temática, a principal palavra-chave é “herança africana”. Quando se ignora o assunto, trata-se de “fuga ao tema” (nota zero na redação do Enem). Alunos que dissertaram apenas sobre a herança africana, de sua importância, de onde ela está presente, por exemplo, mas não refletiram sobre o porquê de ela não ser valorizada, foram apenados.
Como se percebe, portanto, ainda que os critérios (competências) de correção continuem os mesmos, a maneira como cada um tem sido, na prática, considerado tem feito a diferença nas notas. Na C1 (modalidade escrita formal), o vocabulário empregado deve primar pela precisão lexical, logo palavras muito vagas, amplas e imprecisas, além de coloquiais ou eruditas inadequadas devem ser evitadas; na C2 (tema / tipo textual / repertório), como já vimos, o uso do repertório deve ser produtivo, ou seja, deve estar articulado ao assunto; na C3 (argumentação e coerência), é preciso que haja consistência argumentativa, construída por meio de argumentos sólidos, originais e articulados entre si; na C4 (coesão), mais do que a presença recorrente dos marcadores de coesão, é preciso que, junto com eles, os operadores argumentativos sejam empregados de maneira precisa, variada e culta; na C5 (proposta de intervenção), os cinco elementos (agente, ação, meio, efeito e detalhamento), além de presentes, devem ser válidos e devem dialogar com a problematização apresentada ao longo do texto.
Como os modelos de redação dificilmente dão conta dessa complexidade técnica das novas redações nota 1000, cabe aos professores de redação e aos alunos entenderem e aceitarem que é preciso efetivamente refletir sobre a frase-temática, na sua totalidade, e se posicionarem com relação ao assunto, fazendo uma abordagem autoral e original e propondo uma solução pertinente. Isso sim é um ato de cidadania, previsto na Cartilha do participante do Enem, publicada anualmente pelo Inep, mas desconhecida por parte dos candidatos e dos professores.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.