A adversidade imposta à sociedade brasileira pela pandemia da Covid-19, além da tragédia de milhares de mortes, protagonizadas por atos políticos irresponsáveis, foi apresentada em capítulos sequenciais de péssima gestão pública. Ficaram evidenciadas as falhas e deficiências em diversas áreas essenciais: saúde, educação, segurança pública e defesa civil.
Mas a carência na prestação de serviços públicos básicos não surgiu agora em virtude da referida crise sanitária. É óbvio que se trata das dramáticas consequências decorrentes da gestão administrativa ineficiente e do falacioso discurso eleitoral populista, ludibriando a população ao longo de décadas de submissão cultural.
Sobre a segurança pública, o que se tem observado é o mesmo padrão de patrulhamento ostensivo deficiente que não tem o esperado efeito preventivo contra os atos delituosos. Ainda se somam ao insignificante índice de resolutividade dos crimes investigados em inócuos e ultrapassados inquéritos policiais, ficando abaixo de 8% a constatação de autoria e materialidade.
Isso significa apenas 5% de denúncias apresentadas pelo Ministério Público, gerando 2% de condenações efetuadas pela Justiça criminal. É o império da impunidade e a certeza que o crime segue uma tendência de aumento exponencial nesse modelo de Segurança Pública ultrapassado e falido.
As investigações criminais presididas por gestores administrativos sem experiência policial de liderança e gestão seguem vagarosamente, distante das técnicas operacionais e da ciência policial, na burocracia das delegacias de polícia, sem estrutura física, a prestarem irrisório serviço público ao cidadão comum, vítima de crime. Apenas os casos de delitos contra pessoas famosas ou com ampla repercussão na mídia possuem uma tramitação mais rápida, por escolha discricionária e sem fundamento do gestor responsável pela atividade policial. Isso é um contrassenso e uma violação da cidadania.
Todos os atos criminosos devem ser rigorosamente investigados em ordem cronológica dos eventos ocorridos. Não há justificativa social e parâmetro de justiça para deixar de investigar um caso de homicídio em um bairro pobre alegando falta de recursos e mobilizar o reduzido efetivo para solucionar “casos famosos”. Não há mais como ocultar a realidade, por meio de pressão política corporativista, alegando que o grande problema da segurança pública é a “falta de recursos orçamentários, carência de efetivo policial, deficiências de tecnologias, insuficiência de armas e computadores modernos”.
Essa afirmação é falaciosa. O problema crucial é o modelo ultrapassado da estrutura funcional das corporações e a gestão precária da ação policial, seguindo a atual estrutura montada na época colonial brasileira, gerada nos fatos históricos ocorridos nos anos de 1808 (estruturação da Intendência-Geral de Polícia pelo Príncipe-Regente Dom João VI), seguindo em 1866 (dissolução, fragmentação e criação do ciclo incompleto de polícia, por Dom Pedro II) e em 1871 (a criação do inquérito policial, em vigor, pela Princesa Izabel). Essa estrutura colonial permanece até hoje gerando criminalidade e impunidade.
Segundo estudos políticos e científicos, observou-se o recente surgimento do paradigma de viabilização das mudanças necessárias no atual sistema ultrapassado. Trata-se da PEC 168, de 10/10/2019, pleiteando a alteração do § 1º do Art. 144 CF de 1988, que dispõe sobre a reorganização da PF em uma estrutura funcional baseada na meritocracia objetiva. O objetivo é trazer a valorização dos trabalhadores policiais, dando-lhes autonomia técnica na investigação criminal, estipulando a “carreira única” com ingresso exclusivamente pela base laboral.
Mais do que isso, a PEC propõe reestruturar a PF com base em moderno modelo de gestão administrativa e logística que preceitua a adoção do “ciclo completo da atividade policial”, conforme se observa nas corporações policiais de todos os países desenvolvidos e democráticos do mundo. É o início de um processo irreversível de reestruturação de todas as corporações policiais brasileiras, com um completo redimensionamento do capítulo que trata da Segurança Pública na CF de 1988. É preciso conscientizar e exigir do parlamento o gesto político corajoso da mudança estrutural.
O autor é advogado criminalista, mestre em Direito Processual Penal pela Ufes, professor da UVV e especialista em Ciência Policial e Investigação Criminal na Coordenação de Altos Estudos em Segurança Pública da Escola Superior da Polícia Federal
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