Neste último final de semana, os capixabas foram surpreendidos com uma notícia desestabilizadora. Dois moradores do bairro Mata da Praia, em Vitória, se envolveram em um tiroteio. De acordo com informações preliminares, o fato gerador foi uma discussão relacionada aos cachorros dos moradores. Dito isso, há o entendimento de que os dois moradores utilizaram suas respectivas armas de fogo como meio de mediação final para discussão envolvendo a circulação dos animais.
Mas para que serve uma arma de fogo? Quando se fala em arma de fogo, precisa ser deixado claro que o verbo principal atrelado ao objeto é " matar". Ou seja, quando um particular com posse saca uma arma, a mensagem é clara: esse objeto pode te matar. Contudo, há clara orientação de que o uso da arma de fogo é a ultima ratio; é a última razão; é o último recurso. Mas quando uma suposta legítima defesa ocorre no bojo de discussões fúteis e torpes? É possível lançar mão da apresentação de uma arma de fogo para dissuadir disputas de mero aborrecimento?
Por outro lado, parece-nos que certos hábitos e leis estabelecem ligação peculiar, fazendo com que as justificativas pessoais criem um mundo pessoal único. Cada um cria sua própria “jurisprudência” sobre como se portar ou interpretar a lei. Nesse ponto envolvendo os moradores, isso parece claro. De um lado, afirmação de legítima defesa por discussão banal. Do outro, a convicção de que a flexibilização das normas para a posse responsável de animais domésticos é natural e aceitável. Em ambos, a violência foi eleita como a mediadora do conflito.
Em vários textos publicados por mim aqui neste espaço, já abordei, por diversas vezes, o assunto “arma de fogo”. Contudo, neste artigo, vamos falar um pouco mais da avaliação psicológica para o manuseio de arma de fogo. Qual a ligação da avaliação e o caso envolvendo os moradores?
A Lei do Controle de Armas estabeleceu critérios para concessão do manuseio de arma de fogo. Para adquirir arma de uso permitido, o interessado deve, preliminarmente, comprovar a capacidade técnica e aptidão psicológica. A lei exige também apresentação de certidões criminais. Mas o que uma avaliação psicológica busca ou investiga naqueles que se propõem a ter uma arma de fogo?
A avaliação é retrato de um momento psicológico do paciente. Reflete um momento atual no ato da avaliação. A avaliação não é um atestado de sanidade mental para o futuro. Fatos pessoais e situações extremas podem mudar tal paisagem de forma significativa e abruptamente (pandemia, luto, problemas severos de saúde etc.).
O que se busca também numa avaliação é investigar se o paciente possui condições de manter certa percepção sobre si ao longo do tempo, sendo capaz de perceber e sentir situações que podem ser inconciliáveis com o uso da arma de fogo. Permite entender se tem condições de perceber as mudanças, as quais podem ser incompatíveis, inconciliáveis e inegociáveis com o manuseio de arma de fogo.
Inclusive, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabeleceu que a avaliação precisa demonstrar que o interessado apresenta características psicológicas importantes para ter uma arma de fogo. Nos aspectos cognitivos, o interessado precisa apresentar processos atencionais adequados e controle inibitório. Quanto aos aspectos de personalidade propriamente ditos, o interessado precisa apresentar uma agressividade e ansiedades adequadas, bem como não apreentar transtorno mental que implique prejuízos de autocontrole.
As legislações dos últimos anos tornaram a avaliação psicológica uma mera formalidade da lei. A renovação durava 10 anos. Agora, cinco anos. Esse tempo é suficiente ou deveríamos pensar numa avaliação psicológica de maneira anual? Soma-se, ainda, que as avaliações apresentam baixíssimo valor para realização. Há relatos de avaliações que são feitas por R$ 80. Por esse valor é impossível realizar uma avaliação minimamente científica.
Somadas as condições técnicas e burocráticas, a avaliação psicológica também apresenta uma limitação importante. É uma ferramenta que também está inserida nas dinâmicas da vida em sociedade. É incabível atribuir exclusiva responsabilidade à avaliação psicológica pelos descontroles dos portadores. A forma como reproduzimos a empatia e o cuidado com o outro estão em constante mutação e afetam a avaliação.
Assim, uma sociedade que posiciona a cultura de paz, da conciliação e da mediação em último plano, mas privilegia e incentiva o uso da força e da agressividade como primeira opção para resolução dos conflitos não pode exigir da avaliação psicológica a resolução dessa bizarra contradição social.
A Polícia Federal afirma que a avaliação deve verificar indicadores psicológicos. Há, assim, 14 indicadores psicológicos necessários e 22 indicadores psicológicos restritivos. De toda sorte, a avaliação é sempre algo global, nunca isolada em determinada etapa ou indicador. Não se considera apto ou inapto um cidadão apenas com base exclusiva em determinada característica psicológica. A questão que apresento é: como esses indicadores podem ser trabalhados em uma sociedade violenta e que coloca o uso da força e da agressividade como primeiras opções para resolução dos conflitos e dos atritos sociais do dia a dia?
Parece-me que os indicadores psicológicos necessários investigados em uma avaliação psicológica são insuficientes. Tais indicadores não são robustos o suficiente para suportar uma forma de ser sociedade que ratifica, incentiva, glamouriza e apoia o uso da força, da violência verbal/física e da agressividade como primeira opção para resolução dos conflitos e desentendimentos.
Neste mesmo sentido, percebe-se que certa inversão social da legítima defesa e do uso da arma de fogo foi internalizada no seio da sociedade. A arma, agora, não é mais o último recurso, e sim o primeiro para dissuadir conflitos banais e de insignificância patrimonial e social. A trivialidade sucumbiu à violência. O problema é que temos milhões de armas na mão de milhões de pessoas. Todas submetidas a avaliação psicológica compulsória e, em princípio, estariam aptas a manuseá-las, bem como entender que o uso da arma como forma de legítima defesa é o último recurso na proteção da vida.
O caso envolvendo os moradores é inquietante e angustiante. Dois cidadãos que, em princípio aptos em suas avaliações psicológicas, sem antecedentes criminais ou históricos de violência, foram tragados por uma forma nefasta de resolução dos atritos banais da vida em coletivo. Uma questão importante: será que os indicadores psicológicos necessários para manuseio de arma de fogo são suficientes para enfrentar essa nova forma de encarar os problemas do dia a dia? Como a avaliação psicológica enfrentará essa nova condição social?
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