O modo como o Brasil saiu da ditadura militar é singular. Ao contrário dos países vizinhos, não prendemos torturadores e não houve sequer uma retratação oficial. Sem tocar nas feridas, engavetamos o expurgo e apertamos as mãos. Por isso mesmo, podemos identificar que os atores sociais antes e depois do chamado período de redemocratização são os mesmos.
O fim da ditadura inaugura uma era de conciliações que exigiu um modelo de estagnação social. Se, por um lado, nunca implantamos uma democracia efetiva (a Polícia Militar nas ruas como braço armado do Estado e regulador dos ânimos sociais, a desigualdade social absoluta e o projeto contínuo de extermínio de minorias sociais são só alguns exemplos), por outro lado, a estagnação resultante da pactuação pós-85 também evitou (até pouco tempo) a implantação violenta da agenda neoliberal. Essa é uma tese bem difundida entre analistas políticos. A grande questão vem a seguir: o que acontece com fim do pacto.
As manifestações de 2013 dividem águas. Apesar da variedade de pautas políticas levadas para as ruas naquele junho, é um consenso que a insatisfação, o esgotamento e o descrédito nas instituições de representação “democraticamente constituídas” foram o eixo sobre o qual giraram todas as outras demandas específicas. Esse é um momento de ruptura com a era de pactos inaugurada no fim da ditadura. E como desdobramento lógico da finitude desse processo histórico temos um reinício ainda pouco claro.
Tateamos duas hipóteses, no entanto: 1) O fim da era de pactos arregimentados por um modelo de estagnação se apresenta como possibilidade de implantação de um projeto democrático radical (do qual ainda estamos à espera); 2) o fim do estado de paralisação também não impede mais a realização efetiva e violenta da agenda neoliberal. Dizendo de outro modo, sem as amarras de um estado pactário, o aprofundamento das reformas neoliberais se torna um imperativo.
São questões que merecem o desenvolvimento e, neste momento, diria que, a propósito da primeira questão, é fundamental que todo movimento político em direção ao aprofundamento da experiência democrática se desenvolva, hoje, a partir da dinâmica de abandono do modelo conciliatório. O modelo putrefato deverá ser substituído por uma proposição de alternativas ainda não postas que partam de uma gramática da liberdade radicalmente diferente daquela sistematizada pelo pensamento liberal. Porque apesar de todos os evidentes dissensos ainda partimos dessa gramática comum. Ao fim e ao cabo, é preciso redefinir “liberdade”, mas antes entendê-la como território de disputa.
Marcos Ramos é professor e autor do livro “Anatomia da Elipse: escritos sobre Nacionalismo, Raça e Patriarcado”, entre outros
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