Finalmente, no dia 18 de junho, o Supremo Tribunal Federal colocou uma pá de cal e definitivamente sepultou em nosso ordenamento jurídico vigente todas as alegações contrárias ao dever do Estado de fornecer o medicamento canabidiol a pacientes que batem às portas da Justiça lutando pelo direito à vida. Certamente, um dia a se comemorar nas fileiras de fóruns e, é claro e principalmente, no seio das famílias de pacientes portadores de epilepsia.
A Corte Constitucional julgando o salvífico Recurso Extraordinário (RE) nº 1165959, com repercussão geral, ou seja, com eficácia contra todos (“erga omnes”) e efeito vinculante obrigatório em relação a todos os órgãos do Poder Judiciário, decidiu que cabe ao Estado fornecer o medicamento que, embora não possua registro na Anvisa, tem a sua importação autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, desde que comprovada a imprescindibilidade clínica do tratamento e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos.
O RE nº 1165959 versava sobre o dever do poder público de fornecer o canabidiol para paciente menor de idade que sofre de encefalopatia crônica por citomegalovírus congênito e de epilepsia intratável, com quadro de crises graves e frequentes. O Estado de São Paulo argumentava que a falta de registro na Anvisa exonerava o Ente-Público da obrigatoriedade do fornecimento do medicamento.
Como não poderia deixar de ser, o STF se escorou no Princípio da Absoluta Prioridade insculpido no Art. 227 de nossa Constituição Cidadã de 1988 que assegura à criança, ao adolescente e ao jovem, dentro outros direitos fundamentais, o sagrado direito à saúde. Em verdade, o Art. 227 repete o comando constitucional do Art. 196 da Carta: ”A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Agora, sem nenhuma dúvida, o canabidiol é, indiscutivelmente, direito de todos que necessitem e, nestas condições, sempre dever do Estado de fornecê-lo.
Aqui, abro um parêntese para descrever ao leigo o cenário dramático destes processos judicias de canabidiol. Os pais desses pacientes portadores de graves e sucessivas crises de epilepsia chegam às portas da Defensoria Pública em completo quadro de desespero e a afirmação é sempre mesma: “Doutor, pelo amor de Deus, a cada crise meu filho se despede um pouco de mim. Já tentamos de tudo”.
Já cheguei a carregar uma dessas crianças na fila de espera até meu gabinete, praticamente desacordada. Dia e noite esses mesmos pais nos procuram em busca de informação sobre o processo, mesmo porque as crises de epilepsia não dão um dia sequer de trégua, nem o amor dos pais pelo filho que agoniza. Alguns pequenos, não aguentam a espera ...
O expert e experimentado da praxe forense sabe muito, muito bem. Uma mera preliminar processual ou defesa de mérito pode se transformar num Everest a ser superado pelo paciente. E, no caso específico do Canabidiol, a preliminar aventada pelo Estado não era uma “mera” discussão preliminar – processual ou de mérito, como queiram –, era mesmo um Everest, íngreme, de ar rarefeito e gélido.
De há muito tempo o Supremo já havia banido a Teoria da Reserva ou postulado do cobertor (“quando o cobertor é curto, cobre a cabeça, descobre os pés ...) – Tema 793 STF – , agora, finalmente, a ausência de registro do canabidiol na Anvisa não pode mais ser arguida como matéria de defesa pela Fazenda Pública. Habemus repercussão geral! Um Everest a menos a ser superado por esses pacientes e suas famílias sentinelas que jamais perdem a fé.
Mais uma vez o Poder Judiciário supera o silêncio do parlamento em uma matéria tão cara a milhares de pacientes espalhados na vastidão desse país continental tão dependente do SUS, regulamentando e determinando o dever do Estado de fornecer o medicamento canabidiol em Acórdão vinculante e de observância obrigatória.
Talvez, agora, seja uma boa oportunidade do legislador de deflagrar uma ação legislativa a respeito dos medicamento imprescindíveis que, embora sem registro na Anvisa, tenham sua importação autorizada pela Agência, evitando-se a eterna e aflitiva judicialização da questão nas abarrotadas Varas da Infância e Fazenda Pública. A dor não pode esperar, o caminho da via administrativa, estribada em boa lei ordinária vindoura, deve ser aberta a milhares de pacientes que padecem.
Concluo com as palavras do relator para a tese no julgamento em questão, o eminente ministro Alexandre de Moraes:
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“Para garantir acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica, não basta estabelecer um dado padrão de atendimento público e pretender que o direito à saúde se esgote nesse figurino. Uma compreensão tão taxativa da padronização da política de atenção à saúde teria o efeito de submeter pessoas necessitadas de tratamentos mais complexos ou portadoras de doenças de baixa prevalência e por isso vitimadas pela ausência de interesse da indústria farmacêutica a uma condição de dupla vulnerabilidade, obrigando-as a suportar um sacrifício absolutamente desproporcional”.
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