Rodney William, no livro "Apropriação Cultural", escreveu: “A superação do racismo é uma grande utopia. Isso significa que persegui-la é um requisito para que sempre caminhemos na direção de uma sociedade mais digna, que assuma e respeite as diferenças e sempre promova a igualdade”. No último dia 28 de outubro, o Supremo Tribunal Federal deu um passo importante rumo à igualdade racial ao considerar que o crime de injúria racial, previsto no Código Penal, é imprescritível. Alguns poderiam perguntar: mas já não era? Não, e aqui vale um esclarecimento.
O ordenamento jurídico brasileiro diferencia os crimes de racismo e injúria racial. O primeiro está previsto na Lei 7.716/89 e tem a finalidade de oferecer uma proteção coletiva, ou seja, não supõe uma vítima determinada. Neste sentido, quando alguém pratica um ato racista, seja na publicação de um livro, de um áudio ou mesmo de uma publicação em rede social, mas sem se dirigir especificamente a uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas, poderá ter seu comportamento classificado juridicamente como crime de racismo.
Para este crime, a própria Constituição Federal já havia assegurado a imprescritibilidade. Imprescritível quer dizer que a qualquer momento será possível investigar, processar e eventualmente punir quem praticar racismo. Noutras palavras: o tempo, como ocorre na imensa maioria dos casos, não afetará o direito dos ofendidos de acionarem a justiça contra os seus ofensores.
A injúria racial, prevista no Código Penal, representa uma conduta direcionada a uma pessoa ou grupo de pessoas específicas. Apesar do adjetivo, a injúria racial nunca deixou de ser uma injúria e, dessa maneira, seguia toda a orientação jurídica comum a qualquer de suas modalidades. Com isso, a injúria racial era prescritível e contava com uma punição mais branda do que a conduta tida como crime de racismo.
Mas isso até o julgamento do STF, em que uma mulher condenada por ter agredido verbalmente uma frentista com expressões racistas teve negado seu pedido para que o Tribunal reconhecesse a prescrição da condenação. Ao decidir dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal ampliou os efeitos do crime de racismo e ressaltou a importância histórica em censurar esse tipo de comportamento. Foi um avanço no sentido de consagrar a dignidade humana e a proteção à igualdade racial, ao respeito às pessoas e, sobretudo, ao legado que o povo negro deixou para o nosso país, e para o tanto que segue emprestando.
A decisão tem um impacto simbólico de grande importância. A persistência do racismo na nossa sociedade é a evidência mais profunda de nossa corrupção enquanto nação. Um povo que naturaliza a barbárie ao seu semelhante, que aceita um desvio moral dessa gravidade, é capaz de naturalizar qualquer outro desvio. Como escreveu a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, não podemos esquecer que o Brasil tolerou a existência oficial da escravidão até 130 anos atrás, e isso deturpou o senso de escrúpulos em relação ao outro, mas também em relação a si mesmo.
Os reflexos estão por toda a parte: assaltos a verbas destinadas à merenda escolar, cortes criminosos de recursos destinados à universidade e desvio de recursos para compra de respiradores e insumos hospitalares. E esses são poucos exemplos de uma história que persiste no compasso da persistência de nossos recalques civilizatórios. Somos filhos da barbárie e se quisermos um país melhor, mais inclusivo, ético e cidadão, precisamos quitar as dívidas com o passado e refundar nossa história a partir do paradigma da igualdade racial.
A decisão do STF segue a proposta de Rodney William. Ela é mais um passo na luta contra o racismo. Ampliação do feixe de criminalização estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal representa algo necessário para atualizar a dupla violação que o racismo carrega: com a história e com o presente.
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Decisões como essa exercem influência cultural quando repercutidas, quando debatidas e tornadas em realidade prática. Decisões como essa permitem que o país se reconcilie com a sua história e possa caminhar rumo à utopia democrática. Oxalá, sigamos caminhando e lutando contra toda e qualquer manifestação racista, pois essa é a mais genuína maneira de lutarmos pelo Brasil.
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