O dia 8 de janeiro de 2023 reservou aos brasileiros episódios que entraram para a galeria dos mais marcantes eventos da história política nacional. Os ataques contra as instituições democráticas em Brasília decerto carregarão o infame rótulo de um dos piores crimes perpetrados desde a Proclamação da República. Suas consequências serão inúmeras. É preciso dimensioná-las para controlá-las.
Certas frações da sociedade brasileira não assimilaram a lição histórica de que cada agressão que se irroga ao Estado Democrático de Direito projeta efeitos corrosivos sobre os princípios em que se funda a República. No caso brasileiro, em que há tanto se convive com as chagas sociais oriundas da espoliação colonial e da escravidão, o enfraquecimento dos ideais selados na Constituição de 1988 equivale a sentenciar de morte as pretensões de êxito civilizatório ainda, porventura, cultivadas.
Não devem, porém, as adversidades do presente esterilizar as esperanças do futuro. Enceta-se, neste alvorecer de era pós-pandêmica, um tempo em que serão retomadas as reformas que definirão o futuro do país. Estão em pauta, por exemplo, diversas propostas para reformular aquele que é o mais injusto e regressivo sistema tributário do mundo, fator que em muito agrava a desigualdade social brasileira.
Eis uma oportunidade de restaurar um relevante princípio da ordem constitucional, o princípio da solidariedade, por cuja violação se estabeleceram diversos mecanismos que desagregam as bases democráticas da tributação, degenerando o sistema tributário brasileiro numa colossal engrenagem (re)produtora de assimetrias socioeconômicas.
Todavia, da mesma substância do veneno provém o antídoto: sendo a tributação um decisivo elemento de vertebração das sociedades modernas, ao se depurá-la de seus vícios, é possível aspirar a uma reconfiguração das estruturas sociais para que se moldem quanto possam ao arquétipo constitucional de uma sociedade livre, justa e solidária.
Nos últimos anos, contudo, os tecidos sociais brasileiros foram infiltrados por ideologias beligerantes, que fazem da violência um método de ação política. Quando levados ao extremo, de tais ideários só podem resultar guerras fratricidas como as que se têm visto no país. A polarização que tanto tensionou pleitos eleitorais recentes é sintoma de clivagens sociais profundas, que provocam o esgarçamento do pacto constitucional que deveria traduzir o consenso primário da vida social.
Nesse complexo quadro, ergue-se a defesa da democracia como um imperativo civilizatório. A ambiência democrática é a mais propícia à catarse e às transformações de que carece a sociedade brasileira. Por isso, os referenciais axiológicos consagrados na Constituição não podem ser reduzidos a “ingênuas quimeras” no imaginário social. Nem tudo que é sólido se desmancha no ar.
Os valores democráticos são faróis que iluminam o tortuoso caminho rumo à concretização universal da dignidade humana. Trata-se de uma encruzilhada histórica que não comporta omissões. Nos dias atuais, não há margem, na ordem internacional, para aventuras autocráticas. O Concerto das Nações decretou o fim da “era dos extremos”. Quem isso não perceber seguirá enclausurado no último vagão da história.
O segundo domingo de 2023 findou com cenário de terra arrasada em Brasília: palácios depredados, santuários da democracia profanados, símbolos republicanos conspurcados, patrimônios culturais destruídos. Democracia violada. A reação constitucional da sociedade civil e das instituições deve ser imediata, a fim de que os atentados de 8 de janeiro não entrem para a história como a “Noite dos Cristais” da democracia brasileira.
E não haverão de entrar. Sob os escombros dos patrimônios públicos vandalizados, serão recolhidas as pedras para reerguer o Estado Democrático de Direito. Toda crise, paradoxalmente, engendra uma oportunidade de fortalecimento. E porque em curso se encontram as reformas decisivas para o futuro da nação, saberão reagir os brasileiros para restaurar o pacto constitucional ferido por incivilizadas minorias nutridas de pulsões despóticas. Posta em xeque, a democracia emergirá com maior vigor e resiliência. Quem viver verá.
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