Eu nem sei se deveria dizer o que penso. Acho que perdi um pedaço da legitimidade ao desistir da defesa do SUS. Desisti de tanto doer. Desisti por impotência, num dado momento da vida, em que as coisas mudam. Mas vivi por lá durante um bom período, estudei, fiz política social, levantei as bandeiras e acreditei.
Deste tempo, posso dizer o seguinte: não há resposta certas, mas há valores. Não há perfeição, mas há compromisso. E mais do que tudo, não há resultado particular sem um ideal pelo universal, pelo outro como igual. Ah, não há realidade sem constância, permanência e coerência.
Neste momento, sinceramente, estou com a humanidade e a solidariedade, aquelas que deviam ter sempre determinado os destinos do SUS. Mesmo que elas estejam só na cautela, na solidão e no silêncio.
Portanto, por ora, sou a favor do isolamento em respeito aos idosos e aos fracos, aos moradores de rua e as minorias com comorbidades, apesar dos horrorosos custos econômicos e sociais. E acho que são realmente horrorosos.
Sobre a eficiência estatal, precisamos de atitudes construtivas. Infelizmente, é uma situação excepcional. Nenhum sistema de saúde estava preparado, nem na Europa desenvolvida. Muito menos o nosso SUS... aliás, até pouco tempo, as classes médias não o enxergavam tão bem, salvo para demandas de alto custo. Descuidamos de sua equidade e universalidade e agora as desejamos de volta, desejamos ardentemente a sua capacidade de resposta, em leitos, PAs e laboratórios.
Eu sinto muito, mas agora não adianta olhar pra trás. Nem repetir um padrão de rigor burocrático. Nem ter por evidente, fácil e exigível uma mágica da super eficiência que nunca existiu.
Eu, que sempre fui uma fiscal rigorosa, ouso dizer, pelo que eu conheço do SUS, que “eles estão tentando o máximo”. Estão tentando com suas forças e riscos. Os riscos e custos são excepcionalmente os deles e não os nossos. Os atores do SUS estão se arriscando muito mais do que nós: gestores, profissionais de saúde, etc., aliás os particulares também. Estão no front. E não são perfeitos.
Não, não teremos os exames perfeitos (em quantidade e qualidade), nem o número de respiradores suficientes, nem de leitos, nem de máscaras, nem a cura, nem as vacinas. Esse é o nosso país de iniquidades. A Covid-19 é só uma lembrança de que um dia, talvez hoje, essas assimetrias nos atingem.
O que nos sobra não é o ataque. São os valores. Os valores sempre estão aí, para serem lembrados nos piores momentos da humanidade.
O valor é “o outro”. O valor primeiro é a igualdade da vida, e o direito a tutela compensatória em situações de vulnerabilidade. A igualdade sempre custa muito caro. Demanda de nós o peso da autocrítica. Nem sei se a Covid-19 trará tanta coragem à sociedade brasileira. Tenho dúvidas, porque queremos falar, mas precisamos realmente decidir se queremos ouvir. E depois, se queremos mudar. Mudar no que nos custa e é justo para o outro. Se realmente decidirmos, talvez possa ser diferente. Talvez possa haver esperança.
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A autora é promotora do Ministério Público do Espírito Santo (MPES)
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