Um grupo de manifestantes negros sai às ruas em protesto pacífico contra uma lei segregacionista e é violentamente reprimido pelas forças policiais, tendo como resultado 69 pessoas mortas e 186 feridas. Naquele 21 de março de 1960, no Bairro de Sharpeville, Província de Gautung, na África do Sul, a população negra protestava contra a Lei do Passe de 1945, que obrigava aos negros portarem um documento com registro da sua cor de pele, etnia, profissão e os locais que estavam autorizados a circular.
A ausência ou não apresentação do documento era punida com prisão (essa era uma dentre as várias leis que organizavam o regime jurídico racista do Apartheid naquele país). Após grande repercussão internacional, a Organização da Nações Unidas, em 1966, aprovou a Resolução nº 2142 e, em alusão ao “massacre de Shaperville”, reconheceu data como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.
O racismo atravessa a história do Brasil. Como país que mais recebeu escravizados na diáspora africana (estima-se algo em torno de 4,8 milhões de pessoas!), durante mais de 300 anos, e o último das Américas a abolir a escravidão, em 1888, as consequências desse flagelo social ainda estão visceralmente presentes na vida concreta dos indivíduos.
Ao final do regime escravocrata, a ausência de políticas públicas para incorporação dos libertos na sociedade brasileira e o racismo científico orientado por uma política eugenista, impulsionadora do fluxo da imigração europeia (que contou com acolhimento social, apoio financeiro e terras), conduziram a população negra a uma experiência de subcidadania que perdura há diversas gerações, tal como Florestan Fernandes refletiu em A integração do negro na sociedade de classes.
A noção de raça pode ser entendida como relacional e histórica, ou seja, não é um conceito fixo ou estático. Seu sentido está vinculado às circunstâncias históricas de determinado povo. Mas é com o advento da modernidade europeia, a expansão mercantilista e o processo de colonização que se constituiu a base material para uma nova visão eurocentrada de homem.
Os “outros”, que não espelhassem essa cultura e valores, não detinham o status de homem, pertenciam a uma raça inferior. A essa condição foram reduzidos os negros africanos – apontados como sujeitos sem alma, sem cultura, sem história –, cabendo-lhes, neste funesto experimento de necropolítica racial, o papel da servidão involuntária.
É por isso que pensadores que refletem sobre relações raciais não concordam com a ideia restrita de que o racismo seja algo meramente individual, comportamental, um desvio patológico. O racismo é um fenômeno social que integra a própria organização econômica e política de uma dada sociedade, ou seja, o racismo é estrutural. Está associado a um contexto sócio-histórico que modela as instituições e a sociedade.
Na obra "Racismo Estrutural", escreveu Silvio Almeida, filósofo e atual ministro dos Direitos Humanos, “as instituições são a materialização de uma estrutura social”. Isso não significa dizer que não existam pessoas racistas, mas que o racismo, para além de uma “distorção de caráter”, encontra-se alicerçado em uma estrutura social viabilizadora de clivagens discriminatórias.
Eliminar a discriminação racial implica reconhecer o racismo estrutural e implementar medidas para superá-lo. Por esse motivo, a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial adotada pela Organização das Nações Unidas em 1965, ratificada pelo Brasil em 1969, dispõe que os países devem adotar medidas especiais e concretas nos campos social, econômico, cultural e outros para assegurar adequadamente o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a esses grupos com o propósito de garantir-lhes, em igualdade de condições, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
A sociedade e diversas instituições do Estado, já na segunda década do século XXI, ainda se mostram tímidas no enfrentamento da discriminação racial. O resultado é que a ausência de debate qualificado não se traduz em políticas públicas concretas que efetivem a superação do racismo estrutural.
As estatísticas sobre a condição da população negra (escolaridade, renda, violência etc.) são constrangedoras e reveladoras do longo caminho a percorrer para concreta e universal garantia do princípio constitucional da igualdade. No livro Eu, Tituba – bruxa negra de Salém, da escritora guadalupense Maryse Condé, ao ser interpelada sobre estar conformada com a condição de escravizado, a personagem diz: “O dever de um escravizado é sobreviver”. No Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, essa ainda parece ser a aviltante missão cotidiana do povo negro no Brasil.
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