O lugar mais sagrado."Qual é o lugar mais sagrado da sua casa? ”. Essa pergunta já me chegou aos ouvidos algumas vezes e eu nunca pude respondê-la. Não é porque tem me faltado o sagrado dentro de casa, mas porque escolher um lugar sagrado me soa ingrato, com todos os cantos da casa que não foram projetados para essa finalidade.
Isso me parece ser coisa da nossa sociedade atual, pois antigamente era mais fácil identificar o canto sagrado da casa: o oratório; a sala de música; a biblioteca; a sala onde tocava-se piano; o terraço, com ou sem; onde se contemplava as estrelas... e por aí vai. Eram, geralmente, espaços que as pessoas permaneciam por algumas horas, buscando elevação espiritual, se encontrar com Deus, ler um bom livro, uma poesia, ouvir uma boa música ou apenas um espaço usado para se matutar e, assim, estabelecer um encontro consigo mesmo.
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Se formos olhar a história, vamos perceber ainda mais profundamente a importância desse locus sagrado. Na Grécia Antiga a cidade (pólis grega) era formada, basicamente, por três espaços: Khora, Ágora e Acrópole. A khora correspondia à parte onde os camponeses cultivavam os alimentos para a cidade, ou seja, a parte agrícola, externa à cidade. A Ágora era o espaço comum das pessoas, onde havia o mercado, a praça principal, lugar onde eram realizadas as transações, as barganhas, os negócios.
A Acrópole era a parte mais elevada. Era ali que os gregos se refugiavam contra inimigos quando as cidades eram atacadas e onde estavam os templos, dedicados aos deuses, como exemplo o Partenon (templo da deusa Atenas). Se buscarmos estabelecer um paralelo desses espaços com nossas casas, a Khora é como se fosse o nosso jardim e nossa garagem, é a parte de fora da casa. A Ágora representa os lugares comuns da casa, como a cozinha, a sala, o quarto, o escritório e o banheiro, lugares em que desempenhamos nossos afazeres comuns do dia a dia.
Já a Acrópole... essa, infelizmente foi subtraída na maior parte das construções contemporâneas. Talvez algumas varandas cumpram um pouquinho desse papel, porém, muito aquém do que representava o canto do sagrado, com uma representação intangível, para nossos avós, bisavós e quem dirá, os gregos. Mas um espaço imprescindível para o culto ao humano.
As casas deixaram de ter os lugares destinados ao encontro com o extraordinário, com o sublime, a nossa essência espiritual, mística, humanística, um ambiente de compartilhamento e convivência. Por isso nos evadimos cotidianamente de nós mesmos e habitamos mundos vazios na internet.
Estamos vivenciando uma evasão de privacidade, pois nos perdemos dentro de nós e em nossas casas. Por isso a pandemia gera angústia. Tivemos que nos confrontar com o fato de termos delineado nossas vidas para estarmos mais fora do que dentro de casa. Paramos de conviver...
Como arquiteta, percebo o quanto a pandemia tem impactado os moradores em suas casas. Houve uma demanda demasiada por reformas e reestruturação de espaços, com um superaquecimento do mercado de construção. Na empresa temos recebido solicitações de reformas e de diversos tipos de necessidades, com demandas singulares e inusitadas dos clientes. Mas com um anseio comum: o encontro com o sacrossanto.
Percebi no anseio por novas configurações espaciais a premissa da renovação e de melhorias, porém, implicitamente, estava ensejado em grande parte dos discursos, um grito de socorro por uma conexão perdida. Nem sempre os clientes sabiam descrever o que pretendiam, mas acabavam externando uma demanda por lugares espiritualizados, com a presença do divino, do sagrado que habita em nós, mas que deixamos escapulir.
Como um sopro, que atravessa a fresta da porta, retumba nas janelas e estala a alma. É hora de reformar os procedimentos e encontrarmos aquele lugar chamado lar, um local especial, imaculado e indescritível, por ser recheado da humanidade dos que coabitam ali.
A autora é arquiteta da LeCanti Arquitetura
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