Em 2020, o Brasil foi impactado por um documentário profundo e poético: “AmarElo – É Tudo Pra Ontem”, de Emicida. Muito mais que um show, a produção que estreou na Netflix costura memórias e trajetórias da cultura negra brasileira com a apresentação do rapper no palco do Theatro Municipal de São Paulo. Em três atos — plantar, regar e colher —, Emicida costura arte, história, resistência e afetos, num enredo que clama: o que fazemos hoje tem raízes no que plantamos ontem.
Três anos depois, a realidade cobra coerência da metáfora. Em meio a uma disputa societária com seu irmão e sócio, Fióti, Emicida se vê em um novo enredo: o elo que antes era força tornou-se nó. A empresa que ambos fundaram juntos, a Laboratório Fantasma, símbolo de independência e representatividade no cenário cultural, virou agora palco de atritos, acusações, ações judiciais e rupturas.
A pergunta que ecoa é: o que foi plantado? Como foi regado? E o que, de fato, se colheu?
No documentário, Emicida afirma que “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. A frase, oriunda da sabedoria iorubá, resume com precisão a lógica da vida – e dos negócios. Nada nasce do nada. Toda consequência tem um ponto de partida. Todo nó, um fio solto.
No campo das relações societárias, a lógica é exatamente a mesma. Empresas são feitas de pessoas, e sociedades são pactos que, sem cuidado, desmoronam com o tempo. Quando não há transparência, quando as regras não são claras, quando o amor vira improviso e o afeto suplanta a governança, o risco é inevitável: as sementes do afeto podem dar frutos de litígio.
É por isso que tantos conflitos familiares se transformam em conflitos empresariais. Sócios que se amam, mas que não documentam decisões, que não definem responsabilidades, que confundem pessoa física com jurídica, que deixam o “depois a gente vê” ocupar o lugar do contrato. O tempo, como sempre, cobra o preço.
E não basta plantar boas intenções. É preciso regar com processo, com transparência, com comunicação clara e com um mínimo de previsibilidade. Sociedades, como jardins, precisam de cuidado constante.
O caso de Emicida e Fióti, que divide o país entre empatia e perplexidade, é um retrato sensível do que acontece todos os dias em empresas familiares e sociedades entre amigos. O que começa como sonho, sem estrutura, pode virar pesadelo com muito mais do que mágoas: com ações judiciais, bloqueio de contas, desgaste de imagem e rompimento de laços que nenhuma decisão liminar resolve.
Por isso, mais do que analisar o caso em si, é hora de aprender com ele. Da arte à realidade, “AmarElo” continua nos ensinando. Se amar é elo, não cuidar é nó. E se o que se planta e rega se colhe, que o plantio da nossa vida empresarial seja feito com responsabilidade.

Porque, no fim, o palco é o mesmo — só muda o cenário. E ninguém quer transformar o espetáculo da construção em um drama de desentendimentos.
A melhor forma de evitar conflitos entre sócios é estabelecer regras claras, bem definidas e praticar a transparência desde o início. O contrato social, por si só, não dá conta da complexidade das relações empresariais. É por isso que acordos societários — como acordos de sócios, protocolos familiares e regramentos internos — são ferramentas indispensáveis. Eles complementam o contrato social, definem papéis, responsabilidades, formas de retirada, distribuição de lucros e até mecanismos de solução de conflitos.
Em tempos em que até o amor vira litígio, prevenir continua sendo o melhor investimento. Negócios bem cuidados, como bons afetos, exigem zelo, palavra firmada e documento assinado. E como ensinou o próprio Emicida: 'tudo que nós tem é nós'. Que saibamos cuidar desse “nós”, para que ele nunca precise se desfazer.
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