Em 2023, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) passou a adotar “Favelas e Comunidades Urbanas” para denominar o que antes era tratado como “Aglomerados Subnormais”. Ambas as denominações correspondem a um esforço de melhor mensuração censitária capaz de captar e organizar melhor as informações relativas a uma parcela considerável de domicílios brasileiros, realizada pelo instituto ao longo de mais de 20 anos. Parcela que supostamente estaria fora dos padrões de “normalidade” da organização urbana.
O IBGE disponibiliza uma excelente nota metodológica no seu site, intitulada “Favelas e Comunidades Urbanas (Sobre a mudança de Aglomerados Subnormais para Favelas e Comunidades Urbanas)", explicando a evolução conceitual e a mudança da denominação. Os números são expressivos. Segundo o Censo de 2022, o Brasil tem 11.403 favelas onde vivem cerca de 16 milhões de pessoas, num total de 6,6 milhões de domicílios.
Mas, para além dos aspectos técnicos, um fato tem muito a ver com a própria mudança da percepção da sociedade sobre o que são e representam as favelas e comunidades urbanas. De local exclusivo de problemas, passaram a ser percebidas também como potência. Como modelo de vizinhança e relacionamento social e como locais de forte criatividade cultural.
E isso foi resultado conjugado da proeminência de ritmos, estilos, artistas e, sobretudo, do trabalho de organizações sociais. Os exemplos do Afroreggae, do Observatório da Maré e da Central Única das Favelas (Cufa), que tem origem no Rio de Janeiro, iluminaram iniciativas semelhantes em todo o país. E o conceito de potência se fortaleceu com pesquisas relacionadas à economia das comunidades. Segundo o Instituto Locomotiva, o consumo das favelas do Brasil chega a R$ 202 bilhões por ano. Se fosse um estado seria igual ao 14º do país em tamanho do Produto Interno Bruto (Censo 2022).
A partir de 2020, o Instituto Gerando Falcões, de São Paulo, propõe uma nova abordagem para as favelas e combate à pobreza. A plataforma Favela 3D. O programa se inicia na favela Marte, em São José dos Campos, e vem se expandindo para comunidades de vários estados do país, inclusive aqui no nosso Espírito Santo.
Pode parecer evidente hoje, mas a ideia de pensar as favelas e comunidades urbanas como lugares que faziam parte da realidade das cidades não era o padrão. A visão convencional propunha a “solução do problema”, através da remoção, da migração dos moradores para conjuntos habitacionais, ou tentativas de transformação das favelas em bairros urbanizados dentro de padrões considerados “normais”.
A mudança na abordagem ocorre na medida em que o poder público e planejadores urbanos passaram a pensar na melhoria das condições das comunidades a partir de suas próprias realidades e tradições, e não pela exclusão delas. Programas como o Favela Bairro no Rio de Janeiro e o Projeto Terra em Vitória foram precursores dos chamados projetos sociais integrados, que propunham ações de urbanização adequadas à realidade de cada comunidade, associadas à participação ativa dos moradores e a implantação de equipamentos e serviços públicos.
A plataforma Favela 3D é um pouco herdeira destas construções e vai muito além. Como princípio propõe uma forte articulação entre organizações da sociedade civil, o poder público e a iniciativa privada. E parte da visão de que a pobreza é um fenômeno multidimensional.
Estabelece um modelo de avaliação, acompanhamento e orientador baseado em oito dimensões: moradia e urbanismo social; saúde; geração de renda; cidadania; primeira infância; educação; cultura, esporte e lazer; e empoderamento das mulheres. Ao que se somam três eixos transversais: meio ambiente, diversidade de gênero e igualdade étnico racial.
Na prática propõe ações em três vertentes; Transformações Urbanas e Habitacionais; Geração de Renda; Desenvolvimento Social. Não há solução padrão. Cada comunidade escreve seu próprio caminho a partir dos indicadores mapeados e com a participação ativa dos moradores. Um dos pilares é o Programa Decolagem, em que as famílias são acompanhadas por mentores, definem trilhas individuais de evolução, sonhos e metas para superarem a pobreza.
O Espírito Santo entrou na rota do Favela 3D. A primeira experiência piloto está na comunidade de Piranema, em Cariacica. No momento é realizado o diagnóstico no território, envolvendo aproximadamente 500 famílias, que embasará o desenho do projeto e definirá os espaços de envolvimento do Governo do Estado, da Prefeitura de Cariacica e das parcerias com a iniciativa privada. A expectativa é alta tanto do lado do governo, como da própria Gerando Falcões, que tem meta de fazer o projeto daqui uma referência nacional.
Nosso desejo é de que após o piloto em Piranema, a Plataforma Favela 3D se expanda para muitas outras comunidades do Espírito Santo, como um modelo compartilhado de política pública. Segundo o Instituto Gerando Falcões, o IBGE estima que 80% das favelas e comunidades têm até 500 domicílios. E este tende a ser um padrão predominante em nosso Estado.
Transformar a vida das pessoas, substituir a pobreza por dignidade e melhorar a qualidade de vida das nossas cidades. Um sonho possível e que já tem um belo roteiro elaborado. É questão de querer, de trabalho e de confiança.
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