O Brasil, segundo definição de sua Carta Política, é uma República, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político.
O Estado Federal em sua concepção clássica, adotada em muitos países, é composto pela superposição de ordens jurídicas, cujas respectivas esferas de atuação são determinadas pelos critérios de repartição de competências estabelecidos constitucionalmente.
O sistema federativo brasileiro, diferindo do modelo norte-americano, onde só há referência na Constituição a dois Poderes (União e Estados), possui três centros de poder político (federal, estadual e municipal).
Em um contexto de pandemia de Covid-19, qual o limite de atuação dos entes federados para a proteção das pessoas que vivem em seus territórios, notadamente diante de eventual inércia da União ou da exteriorização de posições antagônicas por parte da mesma? Haveria espaço para uma atuação legiferante, constitucionalmente respaldada, por parte dos Estados e municípios?
Diversos Estados e municípios editaram atos normativos declarando situação de emergência em decorrência da pandemia, estabelecendo regras quanto ao isolamento social e funcionamento de estabelecimentos comerciais, tudo com o fito de minimizar os impactos na saúde de sua população.
A resposta à indagação acima deve ser positiva. Nesse cenário federativo cooperativo, a União, Estados, Distrito Federal e municípios possuem o dever indeclinável de observância estrita aos vetores constitucionais contidos na Carta Política, inseridos pelo constituinte.
De se mencionar, por oportuno, o expresso permissivo contido na cabeça do art. 24 da Constituição Federal, segundo o qual, compete, concorrentemente, à União, Estados e ao Distrito Federal legislar sobre a proteção e a defesa da saúde.
Aliás, o Supremo Tribunal Federal (STF), em Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 6.341, em que se questionava competências concedidas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária para o enfrentamento da Covid-19 pela Medida Provisória 926, reafirmou a competência concorrente entre União, Estados e Municípios estampada no art. 24 da Constituição Federal, para a fixação de regras que promovam a saúde.
Portanto, não há exclusividade da União na adoção de medidas sanitárias, mesmo porque, em se tratando de saúde pública, o Sistema Único de Saúde (SUS), disposto no art. 198 de nossa Constituição Federal e regulamentado pela Lei n.º 8.080/90, é gerido de forma descentralizada, com direção única em cada esfera de governo, que deve ser, sobretudo, harmônica.
Nesse particular, qualquer postura adotada pela União, seja omissiva seja comissiva, que ponha em risco a dignidade da população e deixe de promover o bem de todos e a saúde se afigura inconstitucional, por transgredir a autoridade da Lei Fundamental da República, não estando os demais governantes dos Estados membros sujeitos à observância de tais diretrizes, dada a autonomia político-administrativa e, principalmente, pelo dever da proteção da nossa Carta Política e salvaguarda dos direitos sociais.
A Constituição Federal deve ser sempre buscada como fonte de conformação dos atos emanados pelos entes federados. Evidenciado que determinada conduta viola e põe em risco valores fundamentais, será na Constituição Federal a busca das diretrizes para se decidir pela sua prevalência ou não.
Seguindo justamente essa linha, recentemente, o Supremo, nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 668 e 669, concedeu medida cautelar para vedar a produção e circulação, por qualquer meio, de campanhas do governo federal, incentivando a população retornar às ruas e às suas atividades, minimizando os riscos da pandemia. Segundo a linha intelectiva do ministro Luís Roberto Barroso, as medidas implementadas país afora possuem embasamento científico e as divulgações, no descompasso da informação, põem a saúde e a vida das pessoas em risco, contrariando o interesse público, além de macular a ordem pública.
De se concluir, pois, que os atos normativos editados pelos entes federados (Estados e municípios) regulando, durante a pandemia, questões de cunho sanitário, restringindo o funcionamento do comércio e a circulação de pessoas, possuem amparo constitucional, diante da concorrência para a proteção e defesa da saúde e devem prevalecer no sistema federativo, observada colidência com atos da União, quando possuírem maior conformação com o texto constitucional, no que concerne ao respeito às normas e princípios nela estabelecidos.
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O autor é promotor de Justiça do Ministério Público do Espírito Santo (MPES)
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