A audácia de Vladimir Putin não tem limites, mas é preciso distinguir o método por trás da petulância. O que está em jogo é a redefinição da ordem mundial que prevalece desde a queda do Muro de Berlim. Ao tornarem-se a única superpotência, os Estados Unidos arvoraram-se a expandir a Otan, atraindo membros do Pacto de Varsóvia e outros países membros da URSS.
Putin, por sua vez, tem a obsessão de restabelecer a glória da Rússia tsarista – e nesse processo naturalmente construir a própria. Contestou desde sempre as reformas políticas de Mikhail Gorbatchov e vem trabalhando com afinco para restabelecer a antiga área de influência russa e neutralizar os avanços da União Europeia e dos Estados Unidos.
É possível que tenha interpretado como fraqueza a prioridade que a diplomacia de Joe Biden atribuiu à pandemia e à economia, cujo corolário é o desengajamento americano de guerras dispendiosas, como as no Iraque e Afeganistão. É possível também que tenha entrevisto uma janela de oportunidade na decisão americana de concentrar recursos na competição econômica, tecnológica e militar com a China, descuidando da Rússia, à qual Biden propôs, na reunião de cúpula bilateral de junho de 2021, a singela construção de "um relacionamento estável e previsível".
Putin vem se aproveitando de que o foco de Washington está em Pequim para impulsionar sua agenda e recolocar Belarus e Ucrânia na sua esfera de influência. Para tanto, parece contar com a compreensão, senão a simpatia de Xi Jinping, pois deslocou as tropas russas que se encontravam na fronteira com a China para a fronteira ucraniana.
Os próximos episódios são imprevisíveis. É natural a tendência de comparar a crise atual com a dos mísseis cubanos. Em 1962, Kennedy e Kruschev estiveram à beira da guerra nuclear, e depois conseguiram negociar um novo bloco de garantias mútuas que tornaram a parte final da Guerra Fria mais segura para ambas as partes e para o mundo. Tomara que a história se repita, e sem farsa, porque as demais opções são terríveis.
Uma guerra terá, inevitavelmente, repercussões muito negativas para a economia globalizada do século XXI. Por sua vez, uma prolongada imposição de sanções à Rússia causará danos significativos também às empresas ocidentais que operam naquela área, desestabilizando mercados e impactando desfavoravelmente o cotidiano da Europa com a interrupção do fornecimento do gás russo, responsável por cerca de 30% do consumo de energia europeu. Da ótica geopolítica, as sanções levarão a orgulhosa Rússia cada vez mais para a órbita chinesa, criando novas tensões e fraturas no cenário mundial.
Para o Brasil, o cenário traz desafios difíceis de superar. Por ironia do destino, justo neste momento em que o país anda tão desacreditado internacionalmente, ocupamos a presidência do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, órgão criado em 1945 justamente para garantir a paz e a segurança internacionais. Temos, assim, a responsabilidade de estimular os consensos possíveis entre personagens cuja intransigência é excitada pela histeria crescente da opinião pública global diante do espetáculo de assistir uma guerra on-line.
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O que o Brasil não pode fazer é se deixar levar por sentimentalismos ou ideologias. Mais do que nunca, cumpre ter em mente os interesses nacionais, cuja defesa requer senso de observação, pragmatismo e faro político, porque o mundo está mudando e a missão do Itamaraty é assegurar que tenhamos a melhor inserção possível nessa geometria bi ou tripolar em gestação.
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