Desde junho de 1999, durante a intervenção da Otan em Belgrado, então capital da Iugoslávia (atual Sérvia), uma capital europeia não havia sido bombardeada. A madrugada da última quarta-feira entregou o bastão para Kiev, bombardeada por forças russas logo no início da invasão da Ucrânia, que experimenta desde 2014 uma guerra civil nas províncias de Luhansk e Donetsk, extremo-leste do país.
O leitor mais atento se lembra da anexação da península da Crimeia pela Rússia em 2014; mesmo se tratando de território ucraniano, os russos induziram e auxiliaram a população local, etnicamente russa em sua maioria, a autodeclarar a República da Crimeia, que imediatamente passou a integrar a Federação Russa. É esse o modelo de Estado concebido pelos russos após o fim da União Soviética: várias repúblicas, cada uma reunindo uma etnia ou um povo histórico, compondo uma enorme federação.
O motivo de falarmos da Crimeia são as muitas semelhanças entre o processo lá ocorrido, em 2014, e o atual confronto entre Rússia e Ucrânia, sendo dois os fatores capitais em ambos os eventos: etnia e território. Ainda que tenhamos, enquanto brasileiros imersos em trocas étnico-culturais, certa dificuldade em entender a necessidade de reunião de um povo sobre o mesmo território, essa ideia tem sido bastante aceita na Europa desde o período de surgimento e fortalecimento dos Estados nacionais, no século XVII. E, especificamente quanto ao território, o senso de pertencimento é somado ao potencial econômico que a região apresenta, seja pela presença de riquezas minerais e terras aráveis, seja pela presença de grandes indústrias.
Para entendermos o papel de cada um desses elementos – etnia e território – na questão russo-ucraniana, voltemos aos primórdios do Leste Europeu. Sim, uma chatice, mas pedimos paciência; essa introdução é relevante para o desenvolvimento do raciocínio.
No século IX d.C., as tribos eslavas que habitavam a região atualmente pertencente a Belarus, à Ucrânia e à Rússia europeia fundaram uma confederação chamada “Rússia de Kiev”, com capital justamente em Kiev. Ela é considerada o primeiro Estado eslavo da história, ou seja, a terra do povo Rus (incluindo o sufixo latino “ia”, usado para locativos pátrios, tem-se a Ρωσία, ou Rossía), povo esse cujos ancestrais eram os “varegues”, viquingues escandinavos que navegaram os rios do Leste Europeu e acabaram por se estabelecer na região. No tocante à Rússia de Kiev, então, é correto afirmar, na historiografia moderna, que os russos e os ucranianos de hoje provêm de uma mesma etnia eslava, os Rus.
A confederação, porém, foi dissolvida em 1240 d.C. em meio às invasões mongóis, deixando o atual território da Ucrânia sob domínio de outros reinos, impérios ou até mesmo “repúblicas” – a parte ocidental do atual território ucraniano, por exemplo, pertenceu à República das Duas Nações (ou Comunidade Polaco-Lituana) até 1600 d.C., quando passou ao controle de um quase-Estado cossaco; mais de um século depois, essa mesma região ocidental tornou-se província do Império Austro-Húngaro, sob o nome de Galícia. O problema começa justamente aqui.
Notamos que, enquanto as porções central e leste do atual território ucraniano estiveram sob domínio do Império Russo desde 1648 d.C., servindo aos interesses de Moscou e de São Petesburgo e permanecendo culturalmente integradas por séculos aos russos – religião, língua e estrutura social eram as mesmas, em regra –, a porção oeste sofreu forte influência de outras civilizações. Austríacos, húngaros e poloneses, por exemplo, eram católicos e compartilhavam elementos culturais germânicos; os cossacos, por sua vez, eram um povo sui generis de cunho guerreiro e campesino, cuja relação com os moscovitas era bastante instável. Esse cenário fez surgir o povo ucraniano, com língua e cultura próprias, compondo a maioria da população na região a oeste de e sobre o Rio Dniepre, mas minoritário nos territórios a leste. A partir daqui, não é correto dizer que russos e ucranianos são povos indistintos, muito embora ambos sejam eslavos.
Com o fim do Império Russo em 1917 e o surgimento da União Soviética, a Ucrânia tornou-se uma república socialista soviética com contornos territoriais parecidos com os atuais, gozando de razoável autonomia para que os ânimos nacionalistas ucranianos fossem apaziguados. Aos poucos, o país foi ganhando terreno: em 1922, Lenin cedeu a atual porção sul, incluindo o importante porto de Odessa, no Mar Negro; em 1945, ao fim da 2ª Guerra Mundial, o país recebeu regiões tomadas da Polônia e da Tchecoslováquia; e, enfim, em 1954, Nikita Khrushchov cedeu a península da Crimeia, ainda que a área fosse habitada majoritariamente por russos étnicos – muitos interpretam o episódio como mais uma das várias tentativas de “russificação” da Ucrânia.
Munido desse roteiro é que Putin enxerga a Ucrânia como “parte integral” da história da Rússia, de modo que incursões militares em terras ucranianas nada mais seriam do que a integração de territórios russos. Isso está expresso no seu longo artigo “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, disponibilizado em inglês no site do Kremlin em fevereiro deste ano, e é somente mais um retrato da sanha pan-eslavista e expansionista que a Rússia sempre conservou.
Terminada a nossa digressão histórica sobre o Leste Europeu, conseguimos entender o porquê de território e etnia serem os dois fatores cruciais das crises contemporâneas na região. Cria-se, na área em que uma etnia ou povo histórico se faz presente há séculos, um senso de pertencimento que extrapola fronteiras nacionais artificiais.
O modo de se dissipar isso são as transferências populacionais forçadas, amplamente levadas a cabo pela União Soviética a fim de dar legitimidade às fronteiras estabelecidas após a 2ª Guerra: 12 milhões de alemães foram expulsos do Leste Europeu e dos Bálcãs – um dos mais tristes episódios do século XX –, milhões de poloneses expulsos do oeste da Ucrânia, centenas de milhares de húngaros expulsos da Romênia e da Ucrânia, entre outros exemplos.
As regiões, por conseguinte, eram repovoadas segundo os planos dos líderes políticos da época. Brutal, mas eficiente. No fim das contas, pelo fato de não ter havido transferência populacional dos russos étnicos no leste ucraniano, na Crimeia e na Ossétia do Sul, a Rússia atualmente induz a autodeclaração de independência dessas regiões e, após, as incorpora à Federação Russa.
Muito bem, todo esse conflito se trata apenas de um surto pan-eslavista e expansionista russo, então? Mais ou menos... há outros elementos bastante relevantes: os ucranianos, em geral, conservam um sentimento antirrusso devido à opressão dos tempos de Império Russo e União Soviética, cujo exemplo mais sombrio é o Holodomor – política agrícola desastrosa de Stalin que matou de fome cerca de 4 milhões de ucranianos entre 1932 e 1933; o leste da Ucrânia é uma região muito industrializada e rica em minérios, fazendo da sua incorporação um grande ganho econômico e populacional para a Rússia; e todo o território ucraniano tem papel central na política de defesa russa, ponto sobre o qual passaremos a falar.
Durante o Império Russo e a União Soviética, a região que atualmente engloba Ucrânia e Belarus serviu de “campo minado” para as duas principais cidades russas, Moscou e São Petesburgo. Se algum líder estrangeiro quisesse conquistá-las, teria que, antes, percorrer milhares de quilômetros e derrotar poderosas cidades como Kiev, Minsk, Smolensk e Carcóvia.
Hitler e Napoleão fracassaram muito por conta desse desgaste. Com o fim da União Soviética, a Rússia viu suas fronteiras desprotegidas e percebeu-se “nua” diante da Organização do Tratado do Atlântico (Otan), instituição militar criada em 1949 para deter o avanço soviético pela Europa, mas posteriormente utilizada também para ampliar a esfera de influência dos Estados Unidos e da Europa Ocidental sobre outros países.
A Otan cooptou, desde 1999 – período em que os russos atravessavam uma gravíssima crise econômica e social –, oito ex-membros do Pacto de Varsóvia, também conhecido como “bloco soviético”: Hungria, Polônia, República Tcheca, Romênia, Bulgária, Eslováquia, Letônia, Estônia e Lituânia.
Ao recuperar seu poderio industrial e militar em meados dos anos 2000, a Rússia decidiu não admitir mais movimentos similares: em 2008, quando a Geórgia iniciou tratativas com a Otan, Putin ordenou intervenção militar no país e passou a ocupar definitivamente as regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul. Agora, toma medidas similares em relação à Ucrânia, que desde o Euromaidan de 2013 declara publicamente seu desejo de associar-se à Otan e de estreitar relações com a Europa Ocidental. Tudo indica que, de fato, os ucranianos perderão as províncias de Luhansk e Donetsk.
É razoável que um país exija alianças militares rivais longe de suas fronteiras, assim como é razoável que um país tenha plena soberania para optar com quem constituir laços econômicos e culturais, desvinculando-se da influência histórica de uma potência estrangeira. A questão russo-ucraniana é extremamente complexa e não pode ser vista sob ótica maniqueísta; a maioria das situações similares ao longa da história somente foi resolvida por guerras ou ações militares unilaterais – e permanecem o sendo, vide o conflito entre Israel e palestinos. Aguardemos as próximas semanas de conflito na esperança de que as principais nações envolvidas delimitem suas condutas de forma pragmática, de acordo com o custo-benefício decorrente delas.
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O maior negócio inacabado da Europa é a dor humana.
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