Mais uma tragédia traz à tona a questão da legislação de trânsito. Como advogado, vivenciei o nascimento do Código de Trânsito em vigor. O ano era 1997. Naquele ano nasceu a Lei Federal 9503, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Em termos gerais, uma lei bem redigida. Aliás, ousaria dizer, uma legislação adiante de seu tempo, especialmente – e isso desagradará ao leitor – uma lei desfocada do mau ambiente onde seria aplicada: um país onde todo mundo quer “direito”, mas não quer “deveres”. E onde falta educação. Essa ausência de educação cívica não é só contaminante da população. Espraia-se para os poderes públicos também. É como se o “modo de pensar” de todos já estivesse contaminado.
O Código de Trânsito, pode-se dizer, estava à frente de seu tempo, mas num país errado. Vejamos um exemplo. O artigo 280, VI da lei exige a assinatura do infrator, sempre que possível, para que os autos de infração tenham validade. Isso não era uma “frescura”. O ato infracional de trânsito ocorre durante uma tarefa corriqueira: dirigir. Depois de 30 ou 60 dias, se chegar uma multa de trânsito emitida por um “radar”, o condutor nem sequer lembrará se aquilo ocorreu. Poderá pagar a multa, mas o conteúdo educativo dela desaparece.
Se o infrator fosse autuado logo após infração, teria o poder público a multa (que está mantida, pois conteúdo educativo não isenta da multa), mas, principalmente, o efeito da consciência imediata da infração. E essa consciência imediata da infração atrai o conteúdo pedagógico, educativo, pretendido pelo código, pois a noção do ato infracional estará presente de forma indesculpável.
Eis, porém, a questão: o conteúdo pedagógico cedeu lugar aos contratos. Sim. Os contratos de locação de radares, de “pardais” e lombadas eletrônicas, até mesmo de semáforos. A população, inocente, acredita que essas instalações são para nossa segurança. Não são. São para gerar contrato! Não vão gerar resultado educativo nenhum. Podem gerar receita. Mas não o resultado pedagógico desejado pela lei.
Não precisar colher a assinatura do infrator foi ótimo para os órgãos de fiscalização. Poupou-lhes o trabalho de autuar o infrator. Hoje, praticamente 100% das multas não são assinadas pelo infrator, bastando as justificativas mais variadas. Uma multa por “estacionar em faixa de pedestre” com a justificativa “impossível abordar”. Impossível por quê? E aquela justificativa: “evadiu-se à autuação”?
E o pior: tudo isso validado pelo Poder Judiciário, que aplica, de forma muito fácil, a alegação da “presunção de legalidade e validade do ato administrativo”. Tudo isso diante da omissão dos órgãos de controle, que não foram buscar saber por qual razão quase a integralidade dos autos de infração não contém assinatura.
Será que todo condutor evade da autuação? O mais engraçado: evadir-se à fiscalização é uma infração de trânsito. Por qual motivo não há multas por esse motivo, mesmo quando esse motivo é dado para não colher a assinatura do infrator que, por exemplo, furou o sinal vermelho?
O Brasil perdeu quase 30 anos relegando a um terceiro plano o objetivo pedagógico, educacional, previsto no Código de Trânsito. Se lermos a lei, expressões como “pedagógico”, “educação” ou “educativo”, quando somadas, aparecem dezenas de vezes. Não foi por mera coincidência. Mas, quem sabe, exigir educação, no Brasil, seria pedir demais.
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