Imagine um intruso entrar na sua casa, se apropriar de todos os bens, vendê-los, abusar das mulheres e ainda transmitir doenças aos residentes. Cenário similar é vivido pelos povos yanomami devido à ação dos garimpeiros, que promovem desmatamento, contaminação do solo e das águas por mercúrio, transmissão de doenças e apropriação das terras indígenas. A denúncia é de uma das mais combativas e internacionalmente reconhecida liderança dos povos da floresta, o xamã Davi Kopenawa.
Voz eloquente na defesa dos povos originários, Kopenawa viu parte da própria família e membros de sua etnia serem dizimados por doenças - como a gripe e a malária, associadas à ação do homem branco - e assassinatos decorrentes de ataques de garimpeiros nos territórios yanomami. O ouro proveniente dessas terras – usado como adorno para pescoços, dedos e pulsos – é extraído à custa de vidas e da devastação de áreas que, por lei, não podem ser exploradas.
A luta da liderança pela preservação da biodiversidade da maior floresta tropical do mundo, iniciada ainda na década de 1980, é relatada na autobiografia "A Queda do Céu", escrita em colaboração com o antropólogo francês Bruce Albert. A atuação decisiva de Kopenawa para a demarcação e homologação das terras yanomami em 1992 resultou na expulsão de milhares de garimpeiros e outros invasores dos territórios. Desde então, o líder espiritual e ativista político vive sob ameaça de morte.
Apesar dos esforços, a área de garimpo no Brasil cresceu progressivamente de 1985 a 2020. Conforme levantamento do MapBiomas, no período foi registrado aumento de 300% da área de mineração dentro de unidades de conservação. O maior salto foi entre 2010 e 2020, quando a área explorada passou de 38,4 mil para 107,8 mil hectares. A maior parte da atividade é praticada por garimpeiros, de forma artesanal e majoritariamente predatória.
O inglório trabalho realizado por Davi Kopenawa e outras lideranças indígenas para manter a floresta e toda a sua riqueza em pé parece ganhar fôlego e um novo capítulo com o recém-criado Ministério dos Povos Originários. Sob o comando da deputada federal eleita Sonia Guajajara (Psol-SP), a pasta terá um desafio hercúleo para recuperar o desmantelamento da política indigenista promovido nos últimos quatro anos, período no qual, vale o registro, nenhum território indígena foi demarcado no país.
O ministério terá de defender de modo intransigente o que já é estabelecido desde a Constituição Federal de 1988: a preservação dos territórios originários, assim como a cultura, a língua e a própria existência dos povos indígenas. Essa garantia exigirá o fortalecimento de órgãos de proteção, como a Funai; articulação com outros ministérios, como o do Meio Ambiente e o da Agricultura, em torno de ações para o desenvolvimento sustentável; além do apoio de estruturas ostensivas para garantir proteção, como polícias e Forças Armadas.
Mais que isso, é fundamental suplantar o estereótipo dos indígenas como seres indolentes, submissos e inferiores. Isso demanda o reconhecimento do papel dos povos indígenas para a formação da nossa história e para a conservação dos recursos naturais existentes, sobretudo da Amazônia, floresta essencial para o equilíbrio ecológico e contenção dos efeitos das mudanças climáticas.
É imperativo valorizarmos a sabedoria ancestral, que muitas vezes nos serve de alerta. Como o que Davi Kopenawa nos traz em "A Queda do Céu", numa espécie de profecia, vaticina: “(...) quando a Amazônia sucumbir à devastação desenfreada e o último xamã morrer, o céu cairá sobre todos e será o fim do mundo".
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.