Em um momento excepcional de nossa geração, marcado pela crise sanitária mundial decorrente da pandemia de Covid-19, diversos pensadores têm se debruçado sobre as mudanças bruscas que o risco viral tem causado nas relações sociais e políticas e suas marcas profundas no porvir, que poderia ser chamado genericamente de pós-pandêmico.
O sul-coreano residente na Alemanha Byun-Chul Han, por exemplo, cogita que a Covid-19 pode deixar como herança a intensificação da digitalização da existência e sua utilização pelo Estado para fins políticos, sob o pretexto de cuidar das pessoas, de sua mobilidade e de seu estado de saúde. No seu entender, a eficácia do modelo chinês na contenção da propagação do vírus por meio da tecnologia digital é correlata da tendência de um governo autoritário e algorítmico da vida já existente anteriormente. Essa tendência será expandida e exportada ao Ocidente, colocando ainda mais em crise a vida democrática, onde ela ainda resiste e subsiste.
Do ponto de vista da moral social, Han antecipa que uma vida mais reclusa e confinada imposta pelo medo de outras propagações virais pode ser uma propensão planetária após a pandemia, evidenciando o encolhimento das práticas de cooperação mútua, bem como a inibição dos movimentos de revolta contra os abusos do poder político. Ao preocupar-se mais com a própria sobrevivência do que com a de seus semelhantes, o sujeito constituído pelos dispositivos de confinamento pandêmico não será munido de um forte sentimento de solidariedade.
Já o filósofo esloveno Slavoj Žižek considera que, do ponto de vista político, a pandemia dissemina vírus ideológicos adormecidos, como teorias da conspiração conservadoras, notícias falsas e explosões de racismo. Ocorre que outros vírus dela decorrentes poderão ainda nos infectar: trata-se da constituição de uma sociedade alternativa, situada além dos limites do Estado-Nação, responsável pela inauguração de novas formas de cooperação e solidariedade e a consequente exigência de reformulação da economia global.
A pandemia revela que esta economia está muito mais preocupada com a perturbação do “bom” funcionamento do mercado mundial e o “nervosismo” deste ente animalizado do que com as pessoas que continuam morrendo. Na contramão dessa economização da vida humana, a pandemia evidencia também, diz Žižek, o fortalecimento dos laços de solidariedade cotidianos, como o autocuidado e o cuidado com os outros. Além disso, ela evoca a necessidade da instauração de novas formas de solidariedade transnacionais, tais como a criação de uma organização global que possa “controlar e regular a economia, assim como limitar a soberania dos Estados nacionais, quando for necessário”, como, por exemplo, a concessão de um maior poder executivo transnacional à Organização Mundial da Saúde (OMS) diante de uma crise sanitária, como a que se vive em 2020.
A regulação transnacional de uma crise sanitária, provisória e exclusivamente com o objetivo de proteger um número maior possível de vidas humanas, evitaria a politização da pandemia, como ocorre em diversos países do mundo, especialmente no Brasil. Em nosso país, as diferenças de posicionamento político não foram deixadas de lado diante da necessidade urgente da cooperação e coordenação do combate à pandemia por parte da federação, dos estados e municípios.
Como pondera Žižek, é difícil pensar em uma solidariedade transnacional quando uma soberania nacional, já erodida pela dependência subserviente ao imperialismo americano, tenta ilusoriamente afirmar-se expondo milhares de vidas à morte. E muito mais, quando cogita, inclusive, dissociar-se das diretrizes médico-sanitárias de uma Organização, como a OMS. Essa explícita política de governo corresponderia ao que Achille Mbembe designa como necropolítica?
Além disso, ao contrário do que teme Byun-Chul Han, o Estado brasileiro não precisa importar tantas novidades do modelo chinês para a concretização do autoritarismo político que aqui historicamente viceja. Se o controle digital da vida por meio de informações confidenciais para fins políticos já parece ser constitutivo das políticas de governo, reconfigurando outros métodos do passado recente, ao menos então poder-se-ia fazer uso da digitalização para a coordenação de esforços em vista da diminuição do número de infectados e redução da letalidade da doença. Apesar de tudo, ao menos nisso o gigante asiático parece ser eficaz.
Resta, portanto, a pergunta: sairemos desta pandemia transformados em sujeitos mais solidários e com organizações sociais e políticas nacionais e transnacionais mais comprometidas com a proteção de quaisquer vidas humanas, ou, pelo contrário, no mundo pós-pandêmico seremos sujeitos mais fragilizados, atomizados e politicamente impotentes diante de uma democracia em frangalhos?
O autor é professor dos programas de pós-graduação em Filosofia e em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Bolsista Produtividade do CNPQ
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