Cariê Lindenberg tinha os olhos verdes muito vivos e brilhantes, que às vezes pareciam entrar na nossa alma e ler a nossa mente. Não adiantava tentar esconder dele a verdade, os erros, as falhas. Ele sabia. Ou saberia. E queria saber.
Era um chefe, ou um líder, que queria ouvir uma opinião contrária. Não queria ouvir só amém, detestava isso. Seu pedido era literalmente uma ordem. Como ele próprio já disse em depoimentos, era comedido nos pedidos. Mas quando pedia, era prontamente obedecido. Era uma liderança carismática. Bem-humorado, ria de si próprio, o que considero grande virtude.
Convivi com Cariê Lindenberg de forma muito intensa, a partir de fevereiro de 1992, quando comecei a trabalhar na Gazeta, aos 24 anos. Saí de lá em julho de 2019, aos 52, ou 27 anos depois. Fui à sua casa, tomamos um café, expliquei que entendia as mudanças, acho que dei minha contribuição, a redação demandava uma natural renovação.
Quando comecei a trabalhar na Findes, dia 1º de outubro de 2019, ele me mandou um áudio via zap:
“Parabéns pelo novo trabalho. Você merece, vai crescer lá, certamente. Não tenho a menor dúvida”. E disse ainda: “Te espero lá”.
Esse “lá” era o lançamento de seu novo livro, “Vou Te Contar”. Foram as últimas palavras que ouvi de Cariê. Guardarei os áudios. Me arrependo de não ter guardado e-mails. Foram inúmeros. Teriam valor histórico.
Ele me enviava críticas, elogios, sugestões, crônicas e artigos para publicar na Gazeta. Pedia minha opinião, eu dizia a verdade. Um ou outro tinha ficado chato. Outros, a vasta maioria, brilhantes. Uma de suas preocupações era a sua opinião não ser confundida com a da Gazeta. “Não quero atrapalhar”. Às vezes, essa dissociação era impossível, na maioria das vezes, não.
Seu texto original tinha uma particularidade: o raciocínio era cristalino, a linguagem era direta. Mas ele dispensava pontos e vírgulas, emendava uma frase na outra como num fluxo incessante. E no final das contas era só encaixar as vírgulas.
Músico, escritor, artista, fazendeiro, Cariê era acima de tudo jornalista. Frequentava a redação, conversava com repórteres, editores e colunistas, queria saber como estava esta ou aquela apuração, vibrava com a notícia. Era um verdadeiro publisher, compreendido aí como o dono de jornal que é realmente jornalista.
Ele também gostava de beber com jornalistas e artistas, como todo jornalista. Era essencialmente uma pessoa muito simples, franca, sincera. Gostava de um bom uísque, gostava também de cachaça. Em sua casa na Ilha do Frade, aos sábados, costumava reunir gente pobre, gente rica, deputado, senador.
Cariê participou da gênese da bossa nova, nos anos 50, quando o pai era governador do Estado, e o Rio era a capital da República. Conviveu com Tom Jobim, Newton Mendonça, Sylvinha Telles, Ronaldo Bôscoli. É citado no livro “Chega de Saudade”, de Ruy Castro, embora o autor tenha errado a grafia de seu nome, pelo menos na versão que li.
Aos sábados, nas festas em sua casa, em que servia uma feijoada ou um cozido (além de uísque, cachaça e cerveja) era comum encontrar Luís Carlos Miele, Roberto Menescal ou Waleska, além, claro, de Afonso Abreu, Paulinho Sodré, Pedro de Alcântara, Marcela Lôbo, Gerson Camata, Luiz Paulo Vellozo Lucas, Paulo Hartung, entre tantos outros músicos, artistas, políticos, jornalistas, intelectuais.
Cariê era uma grande figura humana. Querido, admirado, respeitado. Como bom jornalista, zelava por valores como liberdade, diversidade, independência, ética, respeito ao contraditório.
Escritor, não chegou a nenhuma academia de letras (o que não quer dizer nada porque Drummond também não chegou), mas certamente é imortal.
Sua obra permanece viva. Suas músicas e seus livros estão aí para serem apreciados. E sua grande obra, a Rede Gazeta, também é perene, e preserva seu legado, praticando um jornalismo vivo e independente.
O Espírito Santo perde um pedaço de sua história. Mas a alma de Cariê está viva em toda a sua obra.
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