Autor(a) Convidado(a)
É psicóloga, doutora e postdoc pela PUC-SP, especialista em Saúde Mental e Direitos das Mulheres

No caso Daniel Alves, o recado é claro: o sistema não é feito para você, mulher

Quando uma mulher tem coragem de dizer “fui violentada”, o mínimo que se espera é que ela não seja, de novo, ultrajada e revitimizada pela própria Justiça

  • Gina Strozzi É psicóloga, doutora e postdoc pela PUC-SP, especialista em Saúde Mental e Direitos das Mulheres
Publicado em 04/04/2025 às 10h16

Mais uma vez, o tribunal absolve. Não só o homem — mas a própria coluna vertebral do tecido civil. A absolvição não é um acidente judiciário. É sintoma. É estrutura. É o resultado previsível de um sistema jurídico que continua operando sobre os alicerces de uma cultura patriarcal, onde o corpo da mulher permanece em estado de suspeição permanente.

A denúncia de estupro ainda precisa ser mais performativa do que probatória. Como se houvesse um manual, um roteiro para o trauma. Como se a violação precisasse passar por uma triagem de autenticidade para ser considerada legítima. É sempre o corpo da mulher que se arrasta até o banco dos réus. A vítima precisa chorar com o tempo certo, resistir com força suficiente, apresentar a dor com linearidade e lógica.

E, essa lógica do descrédito não é apenas machista: ela é epistemológica. O saber jurídico, ainda hoje, se alimenta de uma tradição racionalista masculina que desacredita a experiência subjetiva da mulher. O corpo feminino, historicamente objetificado, agora precisa também ser pedagogizado: deve ensinar, demonstrar, explicar, convencer. E, no fim, fracassa. Porque o tribunal continua sendo um campo de manutenção simbólica da masculinidade intocável. Manutenção do silêncio. A mulher que denuncia carrega nas costas o peso não só do crime, mas do espetáculo judicial que se arma para deslegitimá-la.

O que este caso descortina, destranca — e o que tantos outros reiteram — é a resiliência de uma teia, de uma rede, de um esquema que opera para proteger a masculinidade pública. Para proteger o homem como marca social. A sentença de absolvição não precisa  sequer provar a inocência. Basta alegar a dúvida. E a dúvida, sabemos, é uma técnica sofisticada de silenciamento. A absolvição é um rito de purificação pública do agressor. Não há perdão, porque nem sequer houve culpa reconhecida. O que há é a desmoralização meticulosa da vítima, um assassinato simbólico legitimado por togas.

A filósofa Silvia Federici nos alertou: o corpo feminino sempre foi território de disputa — da Igreja, do Estado, da Medicina. No tribunal, esse corpo se converte em campo de batalha onde o que se julga, no fundo, é a legitimidade da dor da mulher frente à reputação do agressor. E nesse jogo, quem perde é sempre quem denuncia.

Ao desqualificar o depoimento da vítima por “inconsistência”, o tribunal recorre à velha fórmula de transfusão de culpa: esvazia a denúncia, invalida a vivência, e transforma o ato de denunciar em novo suplício.

A justiça, nesse caso, não apenas falha. Ela colabora. Ela reforça o tratado, o laço de impunidade entre masculinidade, poder e silêncio. E deixa um recado claro: o sistema não é feito para você, mulher.

A prática orgânica do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero urge, ampliando a compreensão de contextos e oferecendo uma escuta sensível e qualificada das vítimas, atenta às sutilezas da linguagem, às nuances emocionais, à semântica do sofrimento feminino. É reconhecer que o trauma não se articula somente como depoimento técnico, e sim como vivência dilacerada, em ruínas e escombros.

Preso desde a última sexta-feira, Daniel Alves não tem direito a fiança na Espanha
Daniel Alves. Crédito: Reprodução / Instagram

Não basta clamar por promessas de reparação. É preciso refundar os paradigmas a partir de um enfrentamento ético do abalo, da ferida, da ofensa, da invasão.

Que concordemos que há uma estabilização do conceito de violência sexual não apenas como um ato, mas como um sistema. E que, quando uma mulher tem coragem de dizer “fui violentada”, o mínimo que se espera é que ela não seja, de novo, ultrajada e revitimizada pela própria Justiça.

E a justiça? Segue cristalizada como um clube de cavalheiros. Mudo. Fechado. Blindado. Intocado.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.