Autor(a) Convidado(a)
É historiador e doutor em Ciência Política – Ufscar. Professor do Departamento de História da Ufes

Novos estudos desconstroem a noção do atraso do ES ao longo da história

Apesar de cristalizada na nossa identidade, a tese do atraso traça, a meu ver, um retrato inadequado acerca do Espírito Santo e dos capixabas quanto à sua trajetória

  • Ueber José de Oliveira É historiador e doutor em Ciência Política – Ufscar. Professor do Departamento de História da Ufes
Publicado em 23/05/2024 às 13h40

Neste dia 23 de maio, os capixabas comemoram a colonização do solo espírito-santense. A data diz respeito ao episódio da chegada dos portugueses ao atual município de Vila Velha, a bordo da caravela Glória, na expedição comandada pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho.

O processo de colonização e desenvolvimento do Espírito Santo levou vários séculos, e ao longo do tempo, em especial entre as últimas três décadas no século XIX e a primeira metade do século XX, os capixabas forjaram uma maneira de interpretar a capitania, que depois se tornou província, e finalmente estado, tendo como base a noção de atraso, a qual o historiador Rafael Cerqueira do Nascimento, em excelente tese de doutorado defendida em 2016, denominou de Narrativa Histórica da Superação do Atraso.

Segundo tal narrativa, tornou-se consensual entre os capixabas a opinião de que o Espírito Santo, por suas próprias características socioeconômicas, não acompanhou o dinamismo da Região Sudeste, mantendo-se, até meados do século XX, suas tendências de industrialização tardia e retardatária.

Do mesmo modo, em decorrência de sua inexpressiva força política e econômica diante de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, as três grandes potências da mesma região, o Estado passava despercebido no grande mapa do Brasil, além de ser alijado das mais importantes decisões políticas e econômicas nacionais.

Essa situação o levou, nas palavras de outra grande historiadora, Maria da Penha Siqueira, a uma posição indefinida e desfavorável entre a prosperidade sulista e a pobreza nordestina, e como tal não participava da capitalização do Sudeste, tampouco das políticas de fomento voltadas para o Nordeste. Ou como definiu de maneira jocosa o professor Ademar Martins, capixaba e subchefe do Gabinete Civil da Presidência da República no Governo Jânio Quadros (1961-1961): “O meu pobre Espírito Santo é um Nordeste sem Sudene".

Esse consenso, ao longo dos séculos XIX e XX, converteu-se em uma narrativa histórica, que adquiriu grande destaque no imaginário dos capixabas, em especial dos segmentos de elite que controlaram e que de certo modo ainda controlam os destinos do Estado, fornecendo o arcabouço identitário a partir do qual são forjadas as ações práticas desses grupos em termos políticos e desenvolvimentistas, tanto em nível local, quanto nas esferas nacionais.

O transporte marítimo é um dos pontos fortes da cadeia logística do Espírito Santo, ligada ao comércio exterior
O transporte marítimo é um dos pontos fortes da cadeia logística do Espírito Santo, ligada ao comércio exterior. Crédito: Fernando Madeira

A fixação da referida narrativa, segundo o mesmo Rafael Cerqueira, ocorreu através das obras de quatro historiadores bastante conhecidos, sendo três clássicos, que podem ser compreendidos como memorialistas, no caso José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia de Moraes e Maria Stella Novaes, e um quarto, compreendido por Cerqueira como acadêmico, e responsável pela transposição da narrativa histórica da superação do atraso para o ambiente universitário.

A narrativa difundida por Gabriel Bittencourt em sua obra – a narrativa do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo – seria, segundo o autor, a continuidade e ressignificação, em termos científicos, da primeira, sendo ambas enquadradas no arcabouço das noções de atraso versus superação.

Advogo, no presente artigo, a tese oposta ao que sugere a narrativa histórica da superação do atraso. Apesar de cristalizada na nossa identidade, ela traça, a meu ver, um retrato inadequado acerca do Espírito Santo e dos capixabas quanto à sua trajetória desde a colonização.

São vários os trabalhos de pesquisa, muitos de fôlego, que procuram realocar o Espírito Santo no curso do desenvolvimento nacional. A competente historiadora Enaile Carvalho, por exemplo, realizou pesquisas profundas acerca do Espírito Santo no período colonial, que demonstram, através de farta documentação, que a capitania originalmente pertencente a Vasco Fernandes Coutinho, apesar de um ou outro momento de incerteza, esteve devidamente inserida em uma complexa e sofisticada rede comercial no Oceano Atlântico, além de ter tido papel fundamental nas redes comerciais de abastecimento interno, inclusive na região das minas, em contexto que sequer possuía alfândega funcionando.

Outros trabalhos de importantes historiadores, a exemplo de Luiz Claudio Moisés Ribeiro, vão na mesma direção quando analisam a montagem da estrutura político-administrativa do Império ultramarino português na capitania do Espírito Santo.

Do mesmo modo, trabalhos como o de Rodrigo Goularte demonstram que o Espírito Santo estava em absoluta sintonia com o processo histórico que redundou na nossa independência, ocorrida em 1822, quando nossas elites optaram por se alinhar ao Rio de Janeiro, epicentro da política brasileira naquele contexto, e a dupla Pedro I/José Bonifácio, em detrimento de Lisboa, como fez a Bahia de Madeira de Melo.

Na sequência, o Espírito Santo se inseriu no processo econômico brasileiro do café. E, do mesmo modo, diversos trabalhos desconstroem a noção do atraso reforçando a tese de que o Espírito Santo esteve conectado ao processo de desenvolvimento industrial já no período republicano, a partir de coalização de possibilidades e consenso de necessidades, mesmo considerando suas especificidades.

Diante dessa nova leva de estudos, se coloca como tarefa urgente refletirmos de maneira mais profícua acerca do papel que a narrativa histórica da superação do atraso provocou e provoca na constituição de nossa identidade, bem como na maneira como nos posicionamos no plano do debate federativo. Isso porque está mais que demonstrado que a noção de atraso compreende abordagem flagrantemente equivocada, o que nos leva a colher prejuízos se comparado a outros estados do mesmo porte.

Por fim, para encerrar o presente texto, neste dia em que comemoramos o processo de colonização do solo espírito-santense, devo salientar que os novos trabalhos, alguns dos quais aqui sumariados, abrem um importante flanco de reflexões sobre a nossa terra, e, principalmente, promovem uma importante mudança na maneira pela qual vínhamos lendo e escrevendo sobre a história do Espírito Santo e seu processo de desenvolvimento.

Desde a leitura desses vários textos, me sinto permanentemente provocado a avaliar e a reavaliar o meu olhar em relação ao  Espírito Santo e acerca dos capixabas. Espero que o leitor se sinta provocado a fazer o mesmo!

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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