Em um projeto neoliberal, todas as demandas sociais que se impõem serão pensadas a partir de uma razão que garanta a liberdade. Liberdade aqui, como foi sugerido no artigo “O Estado, a democracia e a disputa em torno da liberdade”, é fundamentalmente uma expressão de direitos de indivíduos proprietários.
O sujeito neoliberal possui a si mesmo e é empresário de si mesmo. Nesse sentido, todas as instituições e dimensões sociais, ao fim e ao cabo, devem estar disponíveis para o desenvolvimento de interesses, aperfeiçoamento da força de trabalho e ampliação de relações interpessoais entendidos como capital. E como capital, buscam rentabilização. Nessa perspectiva, instituições como a escola, só para citar um exemplo, passam por uma reforma que, não se limitando às questões curriculares, fundam novos desejos e uma nova linguagem transformando-se em uma antessala do mercado, como já afirmou Christian Laval.
A propósito justamente da dimensão subjetiva, psicológica e moral da constituição do sujeito neoliberal, Ludwig von Mises, um dos seus teóricos centrais, definiu a noção de lucro não como eixo central da dinâmica econômica (como se esperaria), mas como o objetivo de qualquer ação do sujeito.
Uma questão fulcral na consciência que emerge no neoliberalismo é que ao contrário do que se pensou o liberalismo clássico, o Estado liberal é incapaz de assegurar a liberdade porque falta a ele conhecimento e força (como foi dito pelo teórico alemão Alexander Rustow). Esse é um dado fundamental para compreender a dinâmica política em jogo no Brasil hoje. Evidente que a intervenção reclamada por Rustow não é na esfera econômica, mas na dimensão psíquica, como a seu modo afirmou Mises.
Como já disse Margareth Thatcher, “Economia é método. O objetivo é mudar corações e mentes.” E nessa engenharia social, o Estado tem grande responsabilidade. Em seu sentido prático, isso significa a despolitização da sociedade a partir da naturalização de uma gramática da liberdade centrada na propriedade (de bens e de si) – fica claro quando pautas de igualdade social encabeçadas por minorias aderem ou são cooptadas por dinâmicas liberais – e do enfraquecimento de todo movimento socialmente constituído no sentido de pressionar instâncias de poder (os sindicatos, por exemplo).
Em suma, o neoliberalismo, ao contrário do que possa parecer em sua retórica de amortização do poder inibidor do Estado, não é uma exortação à redução do Estado a qualquer preço, ele é uma engenharia social que entende o Estado como peça fundamental para realização dos princípios de liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa. O paradoxo da liberdade, portanto, é apenas um oxímoro aparente.
É essa dinâmica que está em jogo quando o governo tecnicamente fascista de Bolsonaro se alia a uma agenda neoliberal de Guedes e outros. Importante sublinhar que essa associação entre neoliberalismo e fascismo está longe de ser inédita. Em 1981, em visita ao Chile de Pinochet, Frederick Hayek, mais um dos teóricos centrais da doutrina neoliberal, defendeu a tese da ditadura provisória. “Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”, são as palavras de Hayek publicadas pelo jornal El Mercurio. E prenunciam um caminho nada agradável para o Brasil.
Por ora, finalizo reiterando a tese de que há uma associação profunda entre neoliberalismo e fascismo obnubilada por uma retórica da liberdade irrestrita. E chamo a atenção para a necessidade da emergência de um projeto de liberdade que, ao rejeitar essa gramatica da propriedade, opere no sentido de uma despossessão.
LEIA AS PRIMEIRAS PARTES DESTE ARTIGO AQUI: Daqui para frente, o que está em jogo | O Estado, a democracia e a disputa em torno da liberdade
Marcos Ramos é professor e escritor, autor de "Anatomia da Elipse: escritos sobre Nacionalismo, Raça e Patriarcado", entre outros livros
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