Quando veio a público o documentário que dá título a este escrito, pareceu que se descortinava, enfim, o papel e os usos das redes (anti)sociais no mundo contemporâneo. Mas nem tudo estava ali exposto. Precisou, ainda, aparecerem outras produções, como "Privacidade Hackeada" e "Redes de Ódio", para escancarar como se dá a produção e internalização dos discursos e conteúdos nas redes.
Ao lado disso, no campo acadêmico, uma enxurrada de pesquisas e publicações escancararam o resultado da conexão entre o modelo de negócios da Vale do Silício e o uso desses ambientes para a propagação de discursos e construção de “consensos”.
Por que rememorar tudo isso aqui e agora?
Nos últimos dias, tem ocupado a pauta jornalística brasileira a postura de um Parlamento conservador em torno de temas aparentemente ligados à questão da segurança pública, sem nos atermos a uma definição precIsa. Dois deles são elucidativos: o projeto de lei que altera a dita “saidinha” de presos e a proposta de emenda à Constituição que criminaliza o porte de drogas.
O que se vê em ambos os casos? Ambos são projetos que estampam propostas caras aos setores dominantes no legislativo federal; ambos são projetos que ocupam o debate público nas redes (anti)sociais; ambos se sustentam, exatamente, na construção desses “consensos digitais”, e este é, precisamente, o ponto. Como se constituem esses “consensos digitais”?
Há bom tempo se sabe que as fórmulas de conversação presentes na comunicação digital estão fortemente submetidas a conteúdos motivacionais-emotivos que contribuem para fortalecer o tempo de conexão, bem como a formas de desinformação que proliferam.
Todo o modelo de funcionamento das redes sociais (a curadoria de conteúdos feita pelos algoritmos e mostrada no feed, as recomendações de conteúdo por meio da análise das preferências dos usuários...) empurram o “debate público digital” para longe da razão e, consequentemente, para perto das paixões (sejam elas positivas, sejam negativas).
Conjugando-se essa forma de funcionamento com a intensidade das respostas humanas ao fenômeno do crime, é fácil pensar como as redes estão inundadas por embates – não debates – sobre o tema desta segurança pública. A classe política, por sua vez, que rapidamente aprendeu viver da performance ao invés do debate político, se adaptou a esse novo cenário. O palco se tornou, assim, a rede social.
A pauta da segurança pública, como dito, atende de forma muito adequada a todos esses anseios: o da classe política de fazer uma performance, o da sociedade que anseia pelo espetáculo e o dos algoritmos de engajar cada vez mais pessoas por cada vez mais tempo.
Diante desse panorama, poderíamos nos perguntar: qual o substrato que sustenta o desejo de segurança/punição da sociedade? A resposta parece residir em um medo difuso, um temor sem endereço certo, que infesta o imaginário social e pavimenta o caminho para a aceitação de medidas repressivas – o mesmo medo que move as engrenagens das redes.
Em um cenário onde o pavor se torna o protagonista, políticas de segurança pública, marcadas pela severidade, ganham destaque e apoio, mesmo que a um custo elevado para a liberdade.
Esse medo irracional, alimentado diariamente por discursos alarmistas nos meios de comunicação e no meio político, domina a pauta social, cria um solo fértil para a disseminação de discursos contrários às políticas como as saídas temporárias de detentos, frequentemente mal interpretadas e usadas como argumento para incitar ainda mais o medo.
Sobre o tema, inclusive, é importante lembrar que tais saídas temporárias resultam em uma taxa de sucesso notável, com cerca de 95% dos beneficiados retornando ao sistema prisional após o período concedido. Longe de serem uma brecha na lei, representam um crucial mecanismo de ressocialização, embasado na observância dos direitos humanos e na reintegração dos indivíduos à sociedade. Ao contrário do que o discurso desinformado e “desinformante” das redes (anti)sociais faz supor.
Sobre a proposta de emenda constitucional que criminaliza a posse de drogas, apesar de popular, não deixa de ser um reflexo da antiquada guerra às drogas, que ignora as causas profundas do problema – como a exclusão social e falhas no sistema de saúde – optando por uma solução que parece resolver o problema sem, contudo, abordá-lo em sua complexidade. As redes são protagonistas em ambos os espetáculos.
Assim, o ciclo se fecha: medo, desinformação e respostas punitivas retroalimentam-se em um loop quase inquebrantável, construído sobre uma base de temores infundados e soluções simplistas. O desafio que se impõe é romper esse ciclo, propondo uma análise mais crítica e um compromisso renovado com a justiça social, essenciais para uma política de segurança pública que seja tanto eficaz quanto humana.
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