Há uma tese corrente em certa classe no Brasil de que é preciso aturar o presidente Jair Bolsonaro para aprofundar uma agenda liberal. Nesse sentido, Bolsonaro seria um mal necessário que o objetivo final, nobre, justificaria. Essa classe, diante de um argumento iminentemente econômico, atribui o voto a um alinhamento com a ala neoliberal encarnada em Paulo Guedes e rejeita, inclusive como responsabilidade, a dinâmica fascista operada por Bolsonaro. Trata-se de uma tese falsa. E que precisa ser caracterizada e desmontada.
Bolsonaro não é uma concessão feita pelos agentes da pauta de privatizações e livre mercado, ele é uma exigência do processo de aprofundamento dessa dinâmica. Nesse sentido, é preciso caracterizar os dispositivos fascistas que operam no interior do projeto neoliberal. O que pode soar paradoxal no primeiro momento, visto que a liberdade irrestrita do indivíduo é seu horizonte de ação. Resta saber que liberdade é essa.
A liberdade insistentemente reiterada pelos libertários de direita (que refutam, muitas vezes a classificação “neoliberal”) é tributária à noção liberal clássica centrada no eixo da propriedade. Ela está fundada na noção de “propriedade de si”: ser livre, em outras palavras, é ser proprietário de si. Quando alguém apela pelo “direito de se infectar”, pelo “direito de não se isolar no período de quarentena” ou “pelo direito de não usar máscara”, por exemplo, está no registro de uma consequência lógica desse pensamento: sendo o meu corpo algo que posso gozar como uma propriedade, ninguém pode obrigar-me sem meu consentimento.
O Estado, que em John Locke garantiria o direito à propriedade, é compreendido agora, pelos libertários de direita, como entrave maior do gozo dessa liberdade. Mas o mais importante nessa virada entre liberalismo clássico e neoliberalismo é que essa noção de liberdade como expressão de proprietários norteará não apenas um projeto político-econômico, mas toda ação ética. Paulatinamente, a noção de que o sujeito “possui” a si mesmo se transformará no conceito de “empresário de si” amplamente difundido pela tópica do “capital humano” de Gary Becker.
Diria, por agora, que essa liberdade, é preciso reiterar, fundada no noção de propriedade se tornará um fundamento ontológico da identidade amplamente difundido. E que nos coloca dois desafios 1) compreender em que sentido essa concepção de liberdade, em nome da rentabilidade, prescinde de um estado democrático, 2) introduzir em uma perspectiva crítica, que objetive alguma ação efetiva de construção da democracia real, uma genealogia da liberdade que situe um projeto alternativo. Uma concepção de liberdade que rejeite a condição de proprietário.
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Marcos Ramos é professor e autor do livro “Anatomia da Elipse: escritos sobre Nacionalismo, Raça e Patriarcado”, entre outros
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