O Brasil foi coroado com prêmio de melhor filme internacional no Oscar deste ano. “Ainda estou aqui” fez história e colocou a arte brasileira no lugar que é de direito. Walter Salles com a estatueta erguida honrou a memória de um povo cuja criatividade e sensibilidade dão vida a estéticas que, a despeito das mais duras realidades, fazem o cotidiano possível.
A efusiva alegria dos brasileiros e brasileiras só não chegou ao ápice porque Fernanda Torres mereceria o prêmio de melhor atriz. Obviamente, isso não opacou a grande vitória do cinema brasileiro, mas deixou engasgado um grito na garganta.
Entre alegrias e esperança de ver nossa arte ganhando o mundo e mais uma vez chegando no píncaro, parte da população brasileira interpretou a discussão com óculos ideológicos, entendendo que a conquista do filme, antes de ser do Brasil, foi uma vitória da esquerda.
É óbvio que o enredo tem como pano de fundo a ditadura e suas atrocidades, das quais nenhum brasileiro deveria se orgulhar. No entanto, a obra nos apresenta o drama da família Paiva e a coragem resiliente de Eunice, mãe e esposa, cuja vida foi colocada de cabeça para baixo depois da prisão injusta e agonizante do marido e pai de seus filhos.
Por não entendermos isso, a importante vitória, que deveria ser uma ótima oportunidade de unidade, tem servido para alguns como fonte de revanchismo e categorização partidária. Os representantes dessa opinião, além de desdenhar, acreditam em releituras da história nas quais relativizam-se os crimes cometidos durante o governo militar ou louvam-no como um tipo de período de ouro.
Nas opiniões colhidas online, outro contra-argumento comum à alegria da conquista do Oscar se firma na suposta hipocrisia dos que não são sensíveis aos presos pelo 8 de janeiro. O raciocínio é o seguinte: se celebram um filme que mostra a atrocidade contra uma família no período da ditadura, deveria haver uma revolta contra as “desumanas” e “injustas” prisões dos invasores e vândalos do ato golpista. Não teria espaço aqui para discutir essa equiparação. Mas só a obviedade de que estamos em um Estado Democrático de Direito acabaria com a possibilidade de comparações.
Entre críticos de “Ainda estou aqui” e desdenhadores do Oscar, encontram-se diversos evangélicos. Nas minhas postagens, por exemplo, recebi mensagens de pastores adjetivando o filme de “lixo” e outros fiéis usando os mesmos argumentos dos demais contrários.

Contudo, para quem tem a Bíblia como regra de fé, a interpretação deveria ser outra, independentemente de sua escolha político-partidária. No texto bíblico, Deus é criador e nos convida a partilhar de sua criatividade, que é bela, justa e boa. Criação e criatividade são parte da “imago dei” em nós, como reafirma a tradição, e cada cultura expressa essa imagem com seus tons, cores, ênfases e formas. Nesse sentido, os evangélicos deveriam perceber, para serem coerentes, que nosso cinema, com sua própria identidade, contando nossa história e confessando nosso pecado, honrou a Deus com brasilidade.
Na verdade, mesmo quem pensa que a ditadura é uma invenção (o que seria, na minha opinião, sandice) ou entenda que o filme tenha tendências da esquerda (outra afirmação sem sentido), “Ainda estou aqui” ganhou o Oscar e nos colocou entre as maiores expressões da arte mundial. Só isso já é uma bela razão para celebrarmos. Sendo evangélico, teria um grande motivo para encontrar a graciosidade divina nessa conquista.
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