A porta-estandarte do carnaval de 2020 tem os seios à mostra sob a frase NÃO É NÃO, escrita com tinta vermelho-sangue. Se o lembrete já se faz presente há alguns carnavais (e também neste), não é à toa. O assédio infelizmente não sai de moda.
Da mesma forma, nem entrando para os trending topics a hashtag #indionãoéfantasia ajuda a evitar os caras-pálidas de cocar.
Embora as bandeiras que têm sido levantadas pareçam novas, elas apenas reivindicam um olhar mais comprometido sobre aqueles pressupostos que, naturalizados, permaneceram durante anos silenciados ou tomados como consensuais.
Bom, o carnaval, apesar do seu caráter catártico, jamais esteve desconectado das questões políticas e sociais de cada época. Com o humor, sempre fizemos comparecer temas centrais de nossa cultura. Botamos a sexualidade de Zezé para jogo, precipitados nas considerações sobre sua cabeleira, e, no mesmo passo, deixamos aparecer a violência inaudita, embora presente: corta o cabelo dele!
Com mais atenção ao que dizemos e secretamente pensamos, deparamo-nos com o horror. Sinto constrangimento só de reproduzir o que se diz em “o teu cabelo não nega, mulata”, marchinha que esbanja racismo, machismo e uma tradição em fazer parecer engraçado o que não é. Algumas tradições precisam urgentemente ser superadas.
Se lhes parece inofensivo um homem heterossexual vestido de mulher, experimentem reparar melhor em como ele a representa. Experimentem também perguntar a uma enfermeira os efeitos da sexualização de sua função no cotidiano do trabalho.
Com o “politicamente correto” o mundo (redondo, aproveitando toda chance de dizer) pode até ficar chato. A pergunta é: chato para quem?
Se o politicamente correto tem sido levado aos últimos termos, radical, é porque não se ri de feridas abertas. Ele causa tanto desconforto porque nos força a responder o quanto estamos dispostos a abrir mão de nossos privilégios para não ferir ou agredir o outro.
Vejam como já nos parece difícil deixar de subjugar o próximo em uma festividade como o carnaval! Imagine o tamanho da luta em termos de garantias de direitos e legitimidade de alguns discursos!
Escolher outra fantasia não deveria ser moleza? Sejam criativos!
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A autora é psicanalista
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