Muito se pergunta sobre o que deve ser feito com as pessoas em situação de rua na Grande Vitória como se tratasse de objetos a serem realocados pelo poder público. Tal discussão não é nova e é atravessada por discursos dos seus interlocutores que contribuem para práticas que promovem a vida ou a morte, o cuidado ou o controle dessa população.
A própria terminologia “população em situação de rua” é relativamente recente e se consolida a partir da ampliação e compreensão da experiência de viver na rua, bem como das transformações na esfera das políticas públicas que tem como marco a Política Nacional de Assistência Social (2004) e a Política Nacional para População em Situação de Rua (2009).
A afirmação que com frequência ouvimos de que não se deve ajudar essas pessoas com doações é justificada pelo pressuposto de que dessa forma reforçaria a sua permanência na rua e que, deixando de realizar tal ação, as incentivariam a buscar apoio na Rede de Atendimento.
Tal raciocínio desconsidera que o fato de elas viverem na rua, além de ser complexo, não é da ordem individual e sim coletiva, visto que produzida socialmente por uma sociedade historicamente desigual. As políticas de garantia de direitos a essa população, como por exemplo a garantia de moradia ou abrigos, vale ressaltar, quando existem, são insuficientes para atender a sua demanda.
Tal lacuna precisa ser melhor enfrentada pelo poder público, em vista, principalmente, do aumento vertiginoso dessa população, conforme demonstrado em estudo recente do Ipea que constatou seu aumento de 211% no país de 2012 até 2022, em contraste a um aumento de apenas 11% da população brasileira do ano 2011 a 2021, conforme pesquisa do IBGE.
Na Grande Vitória, de 2007 a 2008, foi realizada uma pesquisa sobre a população em situação de rua, solicitada pelo Ministério do Desenvolvimento Social, que apontou que havia, aproximadamente, 700 pessoas. Atualmente, apesar de não haver dados consolidados sobre o número total nesta região, constata-se o seu possível aumento pela observação atenta nas ruas e pela maior demanda da Rede de Atendimento.
Em dissertação de mestrado, defendida por mim em 2021 na Ufes, discuto como a Política de Assistência Social, em específico a do município de Vitória, através da análise do Serviço Especializado em Abordagem Social, cumpre uma função de controle biopolítico, conceito discutido pelo filósofo Michel Foucault, no sentido de apenas administrar a vida e a morte dessa população.
Compreendendo como a lógica do “fazer viver e deixar morrer” opera, em um dos pontos discuto como o mecanismo de acionamento desse serviço, pelo canal de comunicação Fala Vitória 156, da Prefeitura de Vitória, ao possibilitar que a pessoa domiciliada ligue para atender as pessoas em situação de rua e proceda com o seu encaminhamento para os serviços da Rede de Atendimento, se configura como uma teia de controle contínuo e disperso que age visando uma melhor distribuição dos seus corpos na cidade.
As tentativas de impedir que essa população se estabeleça no espaço da cidade, de forma não violenta, em ações mais sofisticadas como essas que envolvem os serviços da Assistência Social, ou de forma violenta, como as ações de recolhimento de seus pertences pela Secretaria de Limpeza e Guarda Municipal, se configuram como estratégias biopolíticas justificadas por uma suposta ordem da cidade, porém são questionáveis do ponto de vista ético e político.
Diante disso, torna-se necessário indagar o poder público e a sociedade, à luz dos direitos sociais previstos na Constituição, a eficácia dessas ações e sobre a sua intencional negligência, pois, por vezes, tenta-se retirar essa população do campo de visibilidade sob o pretexto de garantia de direitos ou de uma suposta segurança, contudo, esses não são garantidos de fato.
As lacunas da Rede de Atendimento e a violência cotidiana institucional e social que sofrem é um índice aterrorizante de como tratamos essas pessoas. No final das contas, são vistas como lixos passíveis de serem acionados pelo Fala Vitória 156 e “recolhidas” para serem enviados para longe da “nossa” calçada.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.