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Victor é professor universitário e doutor em Educação Física. André é professor universitário e pós-doutor em Educação Física. Líder do grupo Naif/Ufes

O que podemos aprender com a criatividade infantil?

O que temos feito da nossa criatividade na vida adulta? É possível resgatar aquela criança inquieta, questionadora e cheia de vivacidade que já fomos

  • Victor Reis Mazzei e André da Silva Mello Victor é professor universitário e doutor em Educação Física. André é professor universitário e pós-doutor em Educação Física. Líder do grupo Naif/Ufes
Publicado em 29/09/2021 às 14h00
Crianças brincando
A reprodução interpretativa ganha ainda mais potência quando a criança a exerce por meio da cultura de pares, sobretudo nas ações do brincar. Crédito: jcomp/Freepik

Em uma aula, o professor Javier pergunta às crianças:

"Qual o significado da palavra criança?"

"Uma criança é um amigo que tem o cabelo curtinho, joga bola, pode brincar e ir ao circo", disse Luis Gabriel (7 anos).

"É um humano feliz", falou Jhonan (8 anos).

"É um ser com coração, pernas, pés, com relógio e com roupa. Olhos, cabelos e cores", comentou Sebastian (4 anos).

"É responsável pelo dever de casa", gritou Luisa (8 anos).

O professor estava encantado com as repostas e decidiu finalizar aquela conversa perguntando a Jorge, de 11 anos, o que significa para ele a palavra criança.

De forma acanhada e contida, Jorge respondeu:

"É uma vítima da violência."

Essa cena foi inspirada na obra “Casa das Estrelas: o universo pelo olhar das crianças”, organizado por Javier Naranjo e publicado no Brasil pela Editora Planeta, em 2018. Tendo como base as respostas das crianças, passando pelas mais divertidas às mais impactantes, há muito o que se refletir sobre o que foi dito.

Vale trazer para esse debate os estudos de William Corsaro. Para o sociólogo americano, que pesquisa os processos de socialização das crianças, os infantis não aprendem imitando passivamente os modelos sociais provenientes dos adultos. Ainda hoje nota-se um pensamento que enquadra as crianças como seres vazios e incompletos, que devem ser preenchidos pelos modos de socialização propostos por adultos.

Corsaro discorda dessa tese e nomeia de reprodução interpretativa o processo pelo qual as crianças não somente internalizam a cultura, mas também atuam criativamente de forma a transformá-la. Isso significa que as crianças ressignificam o universo dos adultos, a fim de atender aos seus interesses.

Ainda, de acordo com Corsaro, o processo de formação das crianças como seres sociais e culturais começa desde cedo, iniciando-se pelas relações com aqueles e com aquelas que cuidam delas e com os seus pares. Essas interações propiciam o seu desenvolvimento, e, consequentemente, constituem de maneira progressiva as culturas infantis.

Os estudos de Corsaro atestam que as crianças são, sim, produtoras de cultura, protagonistas em suas jornadas de vida e plenamente capazes de atuar socialmente a partir de suas agências, que, grosso modo, pode ser sintetizado nas suas competências para agir e pensar por si.

A reprodução interpretativa ganha ainda mais potência quando a criança a exerce por meio da cultura de pares, sobretudo nas ações do brincar. Nas brincadeiras, as crianças fundem ficção e realidade, criam as suas próprias regras, ampliam os seus repertórios simbólicos, constroem conhecimentos, socializam com colegas e afirmam os seus modos singulares de estar/agir no mundo.

Retomando a cena do professor e seus alunos apresentada no início desse texto e com base nas discussões estabelecidas por Corsaro, compreendemos que a diversidade de respostas a partir da pergunta “o que significa a palavra criança” se relaciona às variadas perspectivas de infâncias existentes na contemporaneidade, haja vista que as condições e realidades socioculturais vivenciadas por elas e por suas famílias são distintas.

Um ponto convergente nas respostas é a riqueza criativa percebida em falas como “é um ser com coração, pernas, pés, com relógio e com roupa” ou “é um humano feliz”. São depoimentos surpreendentes que nos encantam e suscitam perguntas como “de onde elas tiram essas ideias?”

Pegando carona nessa discussão, trazemos um questionamento sobre o que temos feito da nossa criatividade na vida adulta? Será que é possível resgatar aquela criança inquieta, questionadora e cheia de vivacidade que já fomos e deixar um pouco de lado tantos afazeres, a formalidade excessiva e a dureza nas relações que fazemos questão em não deixar prosperar?

Uma pista para resgatar esse espírito pode estar naquilo que podemos aprender com as próprias crianças, a partir de seus múltiplos olhares de mundo. Não somente cabe às crianças, mas também a nós reproduzirmos interpretativamente os seus pontos de vista e a forma de pensar de se relacionar dos infantis.

Para finalizar, com base nos relatos do livro “Casa das estrelas”, desejamos que a infância seja uma potência de vida para os mais velhos e a prática criativa uma constante em suas jornadas, a ponto de que o significado de ser adulto deixe de ser “quando uma pessoa está morta”, conforme nos diz Hector (8 anos) e passe a ser a “criança que cresceu muito”, de acordo com Camilo (8 anos).

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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