Na última semana, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, decidiu que a conduta de portar maconha para consumo pessoal, prevista no art. 28 da Lei 11.343/06, não possui caráter criminal e fixou em 40g a quantidade máxima dessa droga para configuração do chamado “porte para consumo”, traçando um parâmetro distintivo entre essa conduta e a da traficância.
A despeito da grande repercussão da decisão nos meios de comunicação, muitas pessoas seguem com o mesmo questionamento: qual a real mudança que isso gera no dia a dia do sistema criminal?
Com base nisso, elencamos alguns dos principais pontos de reflexão acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal e buscamos desmistificar algumas ideias que têm sido erroneamente propagadas nas mídias sociais.
Em primeiro lugar, é de suma importância destacar que a maconha não deixou de ser uma droga ilegal. Isso porque a entidade responsável por determinar o que é ou não droga ilícita é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a qual insere a maconha no rol de substâncias ilícitas.
Além disso, a legalização da maconha jamais esteve em discussão no STF. O debate ocorrido na Corte e a decisão final foram acerca da inexistência de crime na conduta de portar droga para consumo, de forma que ninguém venha a ser responsabilizado penalmente por esse fato.
Descriminalizar uma conduta, no entanto, é diferente de legalizá-la. No primeiro caso, a ação continua a ser ilícita, apenas deixa de ser considerada crime. Para ilustrar, um exemplo: avançar o sinal vermelho é um ato ilegal, mas não é criminoso. Na segunda hipótese, a conduta passa a ser totalmente permitida pelo ordenamento jurídico, tornando-se um verdadeiro direito do cidadão. Definitivamente, não é o que acontecerá a partir da decisão do STF, que apenas retirou o caráter de ilícito penal da conduta em questão, permanecendo a mesma como um ilícito administrativo, menos grave.
Em termos práticos, a pessoa que for encontrada com maconha em condições compatíveis com a destinação do consumo pessoal continuará sujeita ao que prevê o próprio art. 28 da Le 11.343/06, isto é, à advertência acerca dos efeitos das drogas e à imposição de medidas educativas de comparecimento a programas ou cursos com essa finalidade. A pena de prisão já não era possível desde 2006, e a decisão do STF retirou, também, a possibilidade da imposição de prestação de serviços à comunidade, já que essa é uma sanção de natureza penal.
Além disso, a droga poderá ser apreendida – uma vez que, como dito anteriormente, continua sendo ilícita. A diferença, no entanto, é que, não possuindo natureza criminal, a conduta não mais acarretará quaisquer efeitos penais, como registro para fins de reincidência, antecedentes criminais, suspensão de direitos políticos, entre outros.
Um dos tópicos mais sensíveis da decisão, e que pode suscitar debates de grande profundidade, foi o entendimento firmado de que a quantidade de 40g ou seis plantas fêmeas de cannabis sativa deve ser o parâmetro para diferenciar o uso do tráfico.
No entanto, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, explicou, durante a sessão, que tal limite de 40g é relativo, ou seja, não se opera uma presunção absoluta, mas um standard. Caso a pessoa esteja com uma quantidade menor que 40g, mas as circunstâncias indiquem que ela se encontrava em clara atividade de mercantilização, esta poderá ser presa em flagrante e processada criminalmente pelo tráfico, com base no art. 33 da Lei de Drogas. O que muda, em suma, é que, em tal caso, será exigida uma fundamentação específica e especialmente robusta no auto de prisão em flagrante.
De mesmo modo, caso a pessoa esteja com quantidade um pouco superior a 40g, mas os indícios apontem de modo firme para o propósito exclusivo do consumo, poderá ser considerada usuária, incidindo, assim, o art. 28 da Lei 11.343/2006.
Outro fator interessante que pode ser observado após a decisão do Supremo é que, por força da abolitio criminis (descriminalização), os processos que tratem exclusivamente do art. 28, e em relação a cannabis sativa, devem ser arquivados ou extintos, a depender da fase em que se encontram, pela impossibilidade de que sejam gerados efeitos penais quaisquer.
Vale destacar que o STF ainda determinou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realize mutirões para fins de apuração e correção de eventuais prisões de usuários de maconha que tenham sido indevidamente considerados como traficantes, haja vista se tratar de condição flagrantemente ilegal.
Por fim, um tópico que certamente suscitará grandes debates e logo trará o tema das drogas de volta às pautas do Supremo é a possível extensão da descriminalização do consumo em relação a outras substâncias psicoativas ilícitas (como cocaína ou “crack”, por exemplo).
Apesar de a decisão referir-se exclusivamente à maconha, não é tecnicamente correto, em uma avaliação sobre a (in)constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, restringir a descriminalização do consumo pessoal a uma única droga. O art. 28, que é aquele objeto da análise, não faz menção a qualquer substância específica. Apenas alude a “drogas”, remetendo os destinatários da norma a uma portaria da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que traz o rol das drogas psicoativas ilícitas referidas por essa lei.
Como a (in)constitucionalidade examinada seria do art. 28, e não da portaria da Anvisa que relaciona as drogas proibidas, não se explica, na teoria, a restrição da descriminalização à maconha. Se a sociedade brasileira está preparada para a descriminalização da posse para consumo de toda e qualquer droga, em geral, é uma outra discussão, também importante.
Fato é, no entanto, que a Corte Suprema se valeu de argumentos como o princípio da lesividade, direito à intimidade e vida privada, dentre outros que são basilares da perspectiva liberal em relação ao consumo de drogas, baseada no reconhecimento e no respeito da autonomia individual. Acaba sendo incoerente, diante disso, que descriminalize o porte de uma específica droga e não das demais.
Se o objetivo era o de descriminalizar exclusivamente o porte da maconha para consumo pessoal, o ideal seria declarar a inconstitucionalidade do ato normativo (Portaria) da Anvisa que prevê a cannabis sativa e seus derivados como drogas ilícitas referidas pela Lei 11.343/06, e não do art. 28 desse documento legal.
Nesse caso, porém, teríamos como consequência não somente a descriminalização do porte dessa substância para consumo, mas também para fins de comercialização (visto que, nessa hipótese, a maconha deixaria de ser uma droga ilícita, independentemente da quantidade em posse do indivíduo).
Por fim, as discussões mais relevantes de todas seguem em aberto e à espera de regulamentação: é compatível com as liberdades individuais previstas pela Constituição impedir que uma pessoa tenha droga psicoativa para fazer consumo próprio, seja ela qual for? Como estabelecer parâmetros objetivos seguros para as quantidades máximas aptas a caracterizar a destinação do consumo pessoal, e afastar a traficância, como standard, em relação a cada um dos tipos de drogas?
O Supremo Tribunal Federal postergou a discussão, mas o tema certamente voltará a ser objeto de debates, e de decisão, em um futuro não muito distante.
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