O sistema brasileiro de transporte rodoviário de passageiros é uma referência mundial, mas corre o risco de passar por um processo de desestruturação com potencial de provocar o aumento dos acidentes, o desincentivo às boas práticas das companhias autorizadas a operar e o paulatino desatendimento da população.
O que está em jogo é a segurança e a qualidade de um sistema bem avaliado pelos usuários, e que garante a oferta de linhas de ônibus até mesmo nas localidades menos povoadas e mais longínquas.
Em contraposição ao atual sistema, empresas do chamado fretamento colaborativo atuam sem obedecer a todo o aparato regulatório aplicável às empresas de transporte interestadual de passageiros – e um dos efeitos dessa concorrência assimétrica será a precarização do atual sistema.
As empresas de transporte interestadual de passageiros prestam um serviço público regulado pela Constituição Federal e precisam de autorização da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para operar. Elas seguem normas relacionadas à disponibilidade e acessibilidade dos serviços, à segurança e conformidade trabalhista.
O serviço precisa estar sempre disponível, com frequências estipuladas. Os ônibus sempre devem seguir viagem, independentemente da quantidade de passageiros. As empresas precisam manter agências físicas para a venda de passagens e aceitam todas as formas de pagamento, inclusive papel-moeda. Os veículos passam por manutenções periódicas e saem sempre de rodoviárias, onde também estão presentes postos de fiscalização da ANTT.
Há gratuidades e descontos previstos em lei para idosos, deficientes, jovens carentes e estudantes. A cada 400 quilômetros, há um ponto de apoio com veículo reserva e mecânico. Os motoristas são trabalhadores formais e passam por programas de capacitação e treinamentos periódicos. Os passageiros contam com seguro e com a capacidade financeira das companhias para fazer face a indenizações em caso de acidente.
Já as empresas de fretamento colaborativo vendem passagens apenas por meio da internet e de aplicativos e aceitam somente pagamento por meios eletrônicos, o que exclui o acesso de parcela importante da população. A viagem só acontece se o ônibus tem uma lotação mínima estabelecida pela empresa – submetendo o consumidor a cancelamentos inesperados e ao desabastecimento das localidades menos lucrativas.
Não há frequência mínima garantida. Os passageiros variam e o mesmo acontece com os locais de partida dos veículos, que não saem de rodoviárias, dificultando a fiscalização. Essas empresas não contam com frota própria: fretam ônibus de outras, que fornecem também os motoristas.
No entanto, nem sempre isso ocorre com os devidos cuidados: não necessariamente os veículos alugados são de empresas autorizadas a operar, estão em boas condições e são dirigidos por motoristas qualificados. Em setembro passado, tornou-se notório caso de motorista que fazia uma viagem de Fortaleza (CE) a São José dos Campos (SP) sem sequer possuir uma carteira nacional de habilitação.
Como operam num vácuo regulatório, as empresas de fretamento colaborativo ofertam passagens a preços inferiores – apelo bastante forte, especialmente em momentos de queda na renda. Durante promoções, são vendidas passagens por preços irrisórios, o que sugere uma tentativa de comprar mercado – algo que merece atenção especial porque se trata de comprar um mercado que passou por processo licitatório, já que as demais empresas obtiveram concessões do Estado para operar.
Outro potencial efeito da atuação do fretamento colaborativo é uma espécie de incentivo perverso para que as empresas autorizadas a operar mudem de modelo. Se o peso da regulação é muito alto para uma parcela das companhias, mas inexistente nas empresas de fretamento colaborativo, há um incentivo para que mais empresas atuem de acordo com este último modelo – o que precarizaria a segurança e a qualidade do transporte de passageiros.
Se as empresas que hoje atuam no modelo tradicional e regulado migrarem para o colaborativo, algumas das possíveis consequências seriam a desassistência de linhas de ônibus nas localidades pouco rentáveis, a terceirização da mão de obra, a inexistência de garantias aos usuários de que as viagens não seriam canceladas, a incapacidade financeira das empresas de cobrirem indenizações em caso de acidentes e o aumento do número de acidentes nas estradas.
As empresas de fretamento colaborativo atuam numa zona cinzenta que expõe a riscos os passageiros, motoristas, aqueles que transitam por estradas e até mesmo os investidores que as financiam. Não se trata, aqui, de promover boas práticas ambientais, sociais e de governança (ASG ou ESG), mas de uma etapa anterior: a atuação em conformidade com a legislação.
A ANTT, por exemplo, em mais de uma nota técnica apontou a ilegalidade do modelo de operação da Buser. Nesse sentido, causa estranhamento a seleção, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do fundo LGEF II Brasil FI Participações Multiestratégia na chamada pública para seleção de investimentos de impacto. O fundo, da gestora Lightrock, investe na Buser.
Deve-se evitar que os argumentos dos preços baixos, dos negócios supostamente disruptores e da liberdade econômica sejam preponderantes em relação à segurança e à conformidade às normas. Como diz o velho ditado popular, o barato pode sair caro – para toda a sociedade.
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