Todos os dias, quando acordo, contemplo a vista dos morros da Paróquia Santa Teresa de Calcutá, no Território do Bem Maior. É uma visão linda, de um quadro vivo, banhado de dourado aos primeiros raios da aurora, lembrando-me que o sol nasce para todos. O mesmo acontece no fim do dia, quando o sol se despede e as primeiras luzes das casas são acesas. Nesta hora, os morros são tomados de um dourado intenso, com o sol se derramando em afetos ao se despedir dos pobres para iniciar um novo dia em outro canto do mundo.
Mas algo mudou com a presença da Covid-19. Agora, ao contemplar os morros, um silêncio ensurdecedor ecoa dentro de mim. Fico pensando o que vai ser dos pobres diante desse flagelo. A vida dos pobres já era dura antes da pandemia, continua durante, e tudo indica que vai piorar muito depois. Afinal, que importância tem a vida dos pobres?
É evidente que a infecção da Covid-19 não escolhe classe social, raça, gênero, ideologia ou credo religioso. Ainda que as condições de como o vírus atinge ricos e pobres sejam completamente diferentes. Os pobres ainda estão lutando para tentar fazer alguma quarentena, morando em casas sem água, sem banheiros adequados, sem dinheiro para o sabão e para o pão. Mas é fato que ela atinge a todos, indiscriminadamente.
O que está acontecendo nos países ricos é uma prova disso. Da noite para o dia, as nações mais ricas do planeta foram subjugadas, os homens e as mulheres mais poderosos do mundo se viram impotentes diante de um ser que nem sequer tem vida. Mas a Covid-19 não vai acabar com as desigualdades sociais. Isso é dever do poder público.
Às vezes me pergunto se a Covid-19 não é uma resposta às nossas ações e aspirações mais profundas. Ações e aspirações de uma sociedade idolátrica, que voltou as costas para o futuro da humanidade ao cultuar a morte, negando a vida a tantos irmãos e irmãs que morrem no mundo inteiro vítimas da fome, das guerras, do terrorismo e de tantas outras desgraças que alimentam o insaciável deus mercado, filho primogênito da ganância humana.
A Covid-19 chegou em nosso Estado e já fez centenas de vítimas, mas o vírus da dengue e tantos outros continuam e continuarão presentes no Espírito Santo, enquanto não houver políticas públicas adequadas que cuidem dos mais vulneráveis. A diferença é que a Covid-19 chegou pelas mãos dos ricos, que se tornaram os vetores desta peste, espalhando-a pelo mundo inteiro. E os ricos também estão sendo afetados, já que o contágio se dá pelo contato entre as pessoas.
Aqui no Território do Bem, antes da chegada do vírus fatal, estávamos e continuamos lidando com centenas de pessoas sofrendo com a dengue e a chikungunya. Só que a dengue e a chikungunya afetam os mais pobres. E enquanto os pobres estão sofrendo e morrendo, o poder público, de maneira geral, e boa parte da sociedade, talvez a maior parte, não estão nem aí.
Também me pergunto se estaríamos aprovando o orçamento de guerra se a pandemia afetasse apenas os pobres. Pergunto isso porque, talvez, as pessoas não tenham se dado conta que estamos há décadas em estado de guerra no Brasil, especialmente, no Espírito Santo.
Certamente a Covid-19 matará muita gente nos próximos meses. Provavelmente, pessoas que conhecemos e amamos, mas suspeito que não matará tanto quanto a violência tem matado jovens, pretos e pobres no Espírito Santo. Só nos primeiros três meses do ano o número de homicídios chegou a quase 350 mortos. Em março foram 143 homicídios, uma média de cinco assassinatos por dia. Ou seja, estamos em estado de guerra há muitos e muitos anos no Espírito Santo. E vamos continuar neste estado enquanto só os pobres e os filhos dos pobres forem assassinados.
Contudo, enquanto o sol continuar tingido de dourado a moldura viva de minhas janelas e as pipas planarem suave e alegremente no céu das periferias, haverá esperança de uma sociedade mais humana, alegre, diversa e criativa.
É certo que a Covid-19 não vai acabar com as desigualdades sociais do Brasil, nem vai tornar a sociedade brasileira menos racista, excludente ou elitista, porque isso depende de cada um de nós mudar. Mas, talvez, ela nos ensine a olhar para a vida com um olhar diferente e possibilite o surgimento de uma nova sociedade.
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O autor é Vigário Episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória
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