Em "Raízes do Brasil", Sérgio Buarque de Holanda explica que os privilégios hereditários na história da Espanha e de Portugal. Por não terem tido influência tão intensa quanto nos seus vizinhos europeus, não precisaram ser abolidos para que se firmassem nesses países de estirpe ibérica os princípios da competição individual. Porque ali a burguesia mercantil encontrou dificuldades menores para prosperar, também não precisou adotar um modo de agir e pensar absolutamente novo, ao contrário das partes do mundo onde o feudalismo teve maior marca.
Em "Por que as Nações Fracassam", Daron Acemoglu e James Robinson explicam que a centralização política empreendida na Inglaterra por Henrique VII e Henrique VIII, nos séculos XV e XVI, levou os barões e as elites locais do país a reivindicarem uma voz mais ativa no poder central, o que permitiu finalmente que o Parlamento se tornasse um contrapeso definitivo à Coroa inglesa.
O que esses dois casos têm em comum? Além de constituírem episódios particulares da história europeia, eles apontam para um princípio mais geral da filosofia, enunciado desde Heráclito de Éfeso, na Grécia Antiga: uma realidade em um sentido pode gerar justamente uma outra no sentido oposto; um bem, por vezes, pode gerar um mal, e vice-versa.
O mesmo princípio aparece também em Shakespeare, por exemplo, na peça "Júlio César". Brutus é levado por seus sentimentos republicanos à conspiração que culmina com o assassinato do ditador Júlio César. Porém, o mesmo republicanismo de Brutus permite que Marco Antônio, aliado de César, não apenas permaneça vivo, mas também discurse ao povo romano. Resultado: o povo fica do lado de Marco Antônio e tem início em Roma uma nova tirania, contrariamente aos desígnios iniciais de Brutus. Ainda em Shakespeare, em "Muito Barulho por Nada", Benedito reflete, falando sobre a música (e seus instrumentos): "Não é estranho que tripas de carneiro possam carregar assim a alma humana?".
Mas ninguém melhor do que Machado de Assis expressou essa ideia, quando, em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", o personagem diz: "O vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã". Brás Cubas, ainda que por motivos torpes, de alguma maneira ajudava a pobre Dona Plácida.
Por que estou dizendo tudo isso? Para além do valor intrínseco do princípio filosófico, pode ser útil também lembrarmos que a percepção da nossa própria ignorância, ao menos sobre certos assuntos, é um requisito essencial à verdadeira busca pelo conhecimento – desde a dialética socrática até o método científico atual.
Por exemplo, isso nos preveniria de opinarmos sobre assuntos médicos sem antes ouvirmos a opinião de especialistas; ou comentarmos uma decisão judicial sem a termos lido; ou então nos alertaria que não é prudente condenar uma outra pessoa sem antes ouvir a sua versão (direito fundamental ao contraditório).
Em tempos de discussões políticas tão exaltadas por todo lado, sobretudo nos 280 caracteres das redes sociais, talvez ajude lembrarmos que a realidade às vezes é mais complexa e ambígua do que a nossa vã filosofia pode imaginar.
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