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É advogada especializada em violência doméstica e Direito de Família com enfoque em mulheres

PL do aborto é ameaça velada à liberdade reprodutiva das mulheres

Impor às vítimas de estupro a obrigação de levar adiante uma gravidez é de crueldade inaceitável, e não apenas eterniza o trauma da violência sofrida, mas também nega às mulheres o direito aos próprios corpos

  • Amanda Magalhães É advogada especializada em violência doméstica e Direito de Família com enfoque em mulheres
Publicado em 17/06/2024 às 17h58

No delicado equilíbrio entre o direito à vida e a preservação de direitos individuais, a proposta de alteração legislativa representada pela PL 1904/24 na Câmara dos Deputados pende (ainda mais) perigosamente para o lado da restrição excessiva aos direitos das mulheres, e perpetua a cultura do estupro.

Esta proposta, que pretende modificar o Código Penal, é motivo de séria preocupação para todos os cidadãos comprometidos com a Constituição, sendo um ataque direto às conquistas alcançadas em matéria de saúde pública e justiça social.

Resumidamente, o projeto criminaliza o aborto a partir da 22ª semana de gestação em qualquer circunstância, ou seja, deixando de existir o aborto legal, devendo ser aplicada ao caso a pena de homicídio simples, de 6 a 20 anos. O projeto proposto pelo Dep. Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) retroage a legislação brasileira, já ultrapassada, e afeta diretamente a vida de 104,5 milhões de mulheres.

Para que se tenha uma ideia, atualmente, o crime de estupro possui pena de 6 a 15 anos. O de infanticídio, que consiste em matar o próprio filho, depois de nascido, em estado puerperal, possui a pena de 2 a 6.

Desse modo, se você estuprasse alguém ou se matasse seu bebê, sua pena seria MENOR do que se você abortasse depois de ser estuprada. Será mesmo que o bem jurídico a ser tutelado pelo projeto é a vida do feto?

Se um dia já lutamos pela legalização do aborto como mais um passo em direção à igualdade de gênero e à garantia da saúde reprodutiva das mulheres, hoje resistimos para que não sejamos equiparadas a homicidas.

Impor às vítimas de estupro, 66,4 mil mulheres em 2023 (Fonte: 17º A. B. de S. P.), a obrigação de levar adiante uma gravidez é de crueldade inaceitável, e não apenas eterniza o trauma da violência sofrida, mas também nega às mulheres o direito aos próprios corpos. O aborto seguro e legal é prática médica necessária, e visa proteger a saúde física e mental das mulheres. Equipará-lo ao homicídio é uma distorção da realidade.

Há que levar em conta o fato de que muitas mulheres, seja por medo, vergonha, tristeza profunda ou por não compreender que aquilo que passou se tratou de um estupro, demoram a levar ao conhecimento das autoridades que foram vítimas. Muitas delas nunca levam! O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada indica que apenas 1 a cada 10 casos de estupro é denunciado à polícia. Nesse panorama, não seria inimaginável que uma vítima possa demorar mais do que 5 meses para denunciar a agressão sofrida.

Diante dessas considerações, é imperativo que a sociedade brasileira se oponha firmemente à aprovação da PL 1904/24, que é retrógrada e misógina. Tal projeto é instrumento de violência institucional, perpetua o ciclo de opressão e de violência de gênero, e arrasta para a clandestinidade outras tantas mulheres, que buscarão no aborto inseguro um recurso à sentença que lhe fora imposta: de carregar nos ombros o fardo da violência que lhe foi afligida.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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