O Plenário da Câmara dos Deputados, no dia 12/06/24, aprovou o pedido de urgência para votação do Projeto de Lei Antiaborto – PL1904/24. O projeto de lei equipara interrupção da gestação acima de 22 semanas com homicídio. Isso quer dizer que, quando houver a prática do aborto após as 22 semanas de gestação, a mulher poderá ser condenada por homicídio simples, cuja pena é de 6 a 20 anos de prisão.
Entre outros, dois fatores se destacam nesse projeto de lei. O primeiro é o pedido de urgência na votação, e o segundo é a pena aplicada tanto para a mulher que aborta quanto ao médico que faz o procedimento, mas qual a razão para tanta urgência na votação de um PL que impactará milhares de mulheres, crianças e adolescente, principalmente, as que são vítimas de estupro?
É dramática e pungente a situação do estupro no Brasil. É estatisticamente comprovado que o crime aumenta a cada dia. De acordo com o IPEA/2023, ocorrem 822 mil casos de estupros a cada ano, sendo que apenas 8,5% desses casos chegam às delegacias e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde, isso porque na maioria o crime é praticado por membros da família ou pessoas conhecidas. A idade das vítimas assusta mais ainda: grande parte está entre 0 a 20 anos.
Mesmo diante dessa realidade, o PL equipara o aborto após 22 semanas de gestação ao homicídio, com pena entre 6 a 20 anos. Quantas “meninas” serão punidas? Afinal, dado o histórico e recorrência do crime, muitas escondem o estupro e a gravidez que, por vezes, é descoberta tardiamente. Ora, não basta criar lei para ser aprovada em caráter de urgência. Urgente é criar mecanismos para evitar o crime e acolher essas mulheres e meninas. É imprescindível criar políticas públicas eficazes para enfrentar o problema.
Para piorar, a pena prevista é maior do que a pena aplicada ao crime de estupro! Veja, a pena para quem estupra é de 6 a 10 anos, mas a vítima que engravida de um estuprador e pratica aborto é de 6 a 20 anos, vítimas que são vulneráveis ou hipervulneráveis considerando a idade.
Lembrando que a vulnerabilidade da mulher é milenar, cita-se como exemplo a Grécia (tendo em vista que nossa cultura ocidental tem raiz greco-romana), onde já naquele tempo, há cerca de 2.500 anos, Platão entendia que a mulher não possuía a mesma capacidade de raciocínio do homem (Campos e Corrêa, 2007, p.99), justificando a superioridade masculina nesta ideia que se arrastou ao longo dos tempos até chegarmos aos dias de hoje. Isso para dizer uma hipotética razão.
Ao homem, ao longo dos séculos, foi-lhe dado “direito” sobre a mulher, tida como “coisa”, submetida ao jugo e poderio do pai, marido, irmão ou qualquer outra figura masculina, muitas vezes com poder de corrigir, de punir, até mesmo poder de vida ou de morte sobre a pessoa da mulher.
Como se vê pelos números acima, embora tanto tempo tenha se passado, as violências – sim no plural, porque são muitas as formas de violências – contra as mulheres e meninas continuam existindo, entretanto, o foco neste texto é a violência sexual, pois, além de tudo, esta pode resultar em gestação.
Vale lembrar que mais recentemente, em 16.02.2017, a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, no Caso Nova Brasília x Brasil , que julgou estupro realizado por agentes do Estado, firmou o entendimento de que a prática de violência sexual, principalmente, contra meninas, se trata de prática de tortura.
Ainda assim, incrivelmente, em tempos de direitos expressos na Constituição Federal, tempos em que se fala em igualdade e respeito a todos, em dignidade do ser humano e proteção aos mais vulneráveis (sendo certo que a mulher, a criança, a adolescente, são pessoas vulneráveis em vários contextos sociais, mas muito mais quando sofredoras também de violência sexual) vem à tona uma violência manifesta e institucionalizada, exatamente, por parte daqueles que deveriam zelar pelo cuidado aos que precisam de proteção, desacreditando todo o martírio pelo qual passam essas vítimas.
As mulheres e meninas vítimas de violência sexual, tendo seus corpos macerados pelo sofrimento do abuso, do estupro e do resultado gestacional dessa violência, são, igualmente, vítimas do PL n.º 1904/2024, pois o projeto de lei pune duas vezes quem já está sendo punida injustamente, sendo um texto danoso e indecoroso, porque coloca sob mira quem necessita do cuidado do Estado, da família e da sociedade e deixa o agressor em posição de vantagem.
Destaca-se que não é o objetivo aqui tratar de religião, crença, consciência religiosa, de ser a favor ou contra o aborto, mas sim do despropósito na continuidade da violência contra a mulher e contra meninas por via institucionalizada, pretendendo-se penalizá-las de modo pesadíssimo e deixando o verdadeiro criminoso em situação muito mais branda, escancarando um desequilíbrio abissal entre os dois polos desta relação abusiva, violenta e absurda.
Com convicção é necessário se posicionar, retrocessos legislativos ou recuo na conquista de direitos já existentes não podem ser aceitos. A proteção legal já ampara os casos de mulheres e meninas grávidas como fruto de estupro, mas ao se desconsiderar essa proteção, alterando-a para pior, o PL n.º 1904/2024 se configura como uma proposta de lei desumana para as mulheres e meninas vítimas de violência sexual/estupro.
Não aceitemos, não nos calemos!
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