Eu nasci em uma família de crentes. Eram assim chamados os protestantes no tempo em que nasci. Depois os crentes passaram a ser chamados de evangélicos, e com isso foi sumindo o legado da fé protestante. A fé que herdei de minha bisavó, convertida a Cristo em 1890, através da mensagem pregada por um missionário.
A partir desse encontro, entre minha bisavó e o americano, minha família escolheu ser crente, e não somente isso: escolheu ser batista – tradição que surgiu como uma reação à igreja instituída na Inglaterra. Igreja essa que perseguia os que ousavam pensar diferente. Ser batista é uma reação contra o poder.
Por isso, para a minha família, ser batista era tão importante quanto ser crente. Era a igreja das liberdades. De quem soube que uma igreja estabelecida como religião oficial não pode dar certo, pois fere a liberdade individual. Ser batista sempre foi contrariar o que estava posto. Os batistas sempre deram espaço para a liberdade de pensar. E quem pensa quer voar alto. Nisso, aprendi desde muito pequena que o Cristo, o Salvador da minha história, a redenção da minha família, nos chamou para sermos livres. Quem é verdadeiramente livre faz escolhas conscientes e não teme o mal.
Foi dentro dessa liberdade que construí minha identidade, baseada nos pilares que me tornam batista: Cristo é o Senhor – isso é simples e profundo. Reconheço que há uma escritura sagrada, que me orienta e regula a minha fé. Acredito que a Igreja é o Corpo de Cristo, e isso é muito maior que ser batista. Acredito e defendo a separação entre Igreja e Estado, e sempre vou lutar contra uma igreja estatal. Nenhuma religião deve ser escolhida pelo Estado e ter um status especial. Nenhuma!
É evidente que os princípios batistas estão sendo rasgados há tempos, sobretudo por parte daqueles que assumiram a liderança da denominação no Brasil – eu poderia falar de outros países, mas é aqui que eu vivo. É aqui que sou crente batista, casada com um pastor batista, filha de uma diaconisa batista, que teve um pai diácono, cria de uma família que fundou igrejas. Sim, sendo fiel a minha tradição batista, eu levanto minha voz e digo, sem medo, que quem deveria zelar pela história se deixou levar pelas armadilhas do poder, do pequeno controle sobre o outro.
Acontece que armadilhas são contraditórias com a liberdade.
Armadilhas são feitas para prender.
Afirmo que essa liderança virou refém de si mesma. E nessa cadeia de armadilhas, onde é necessário alimentar a fome mesquinha do controle sobre o outro, se aniquila tudo que representa uma ameaça. E assim, se matam as liberdades, pois elas ameaçam. Mas, como ser batista sem defender as liberdades? Sejam liberdades individuais, liberdade de culto, liberdade de expressão, liberdade de consciência. As liberdades são o motor da nossa fé. E da nossa presença na história.
Só esses líderes mesquinhos, encantados com seus podres poderes, acreditam que a consciência pode ser moldada a partir de suas lógicas covardes. Foi pela covardia que desconvidaram meu marido, pastor Marco Davi de Oliveira, o impedindo de falar sobre racismo no encontro nacional de jovens. Foi pela covardia que retiraram o pastor Sérgio Dusilek da presidência da Convenção Batista Carioca. Foi pela covardia que puniram o pastor Ed Rene, o desligando da Ordem dos Pastores Batistas de São Paulo. Foi pela covardia que não permitiram que o pastor Ariovaldo Ramos fizesse a escolha de ser batista.
Foi pela covardia que vi pastores jovens, excepcionais, sendo perseguidos em Salvador, por defenderem a democracia. É covardia o que vejo acontecer, obrigando pastores a se equilibrarem entre o peso da institucionalidade e suas liberdades, de pensarem o mundo na perspectiva que quiserem, tendo como árbitro somente Cristo. Esse é, inclusive, o fundamento da fé batista.
Foi pela covardia que vi – agora – meu amigo, pastor Usiel Carneiro, ser afastado de sua igreja local, soberana em suas decisões, por força de uma liminar judicial. Um recurso tão vergonhoso e abjeto que jamais deveria ter sido solicitado, e muito menos acolhido por qualquer juízo. É a triste conivência das lideranças batistas, em cada Estado e no país, com essa gente que acredita ser batista, sem saber o que significa ser, de fato, batista.
Bons batistas, como foram meus antepassados, significa muito mais do que ser moralmente regulado por padrões que oscilam na sociedade, pois a sociedade e suas expressões culturais não são estáticas. Me recuso a ter um credo que me imponha valores éticos que possibilitam apenas visões unilaterais do mundo.
Bons batistas defendem a liberdade. Seja a que custo for.
Bons batistas devem saber que o amor de Cristo não se impõe por força de lei. Bons batistas não entregam uns aos outros por 30 moedas. Quem fez isso foi Judas, o traidor. João, o batista – o que batizava por imersão –, nos deu o modelo de batismo e nos ensinou a ser os que abrem caminhos para novos tempos.
Bons batistas querem a liberdade de culto, pois nela todos serão respeitados – até aqueles que possuem o direito de não crer. Bons batistas querem a democracia, o sistema que rege essa denominação desde o início de sua existência, onde tudo deve ser decidido pela igreja reunida em assembleia.
Foi na igreja que aprendi o valor do voto, quando escolhi me batizar, formalizando minha filiação na igreja local. Ao ser imersa nas águas, reconhecendo Cristo como Senhor da minha vida, adquiri o direito de votar e o privilégio de ser votada para assumir funções dentro da própria comunidade religiosa.
Bons batistas não apoiam golpes, bons batistas aprendem, desde cedo, a mais pura arte da negociação política para o bem de todos.
Os líderes batistas não são bons batistas – essa é a verdade. São eles que estão sustentando a covardia generalizada, e no caso do pastor Usiel, da Igreja Batista da Praia do Canto, no Espírito Santo, a mais grave de todas, pois capitularam diante do abuso da autoridade de um juiz. Um juiz que não tem competência, pois o Estado não tem competência para fazer esse julgamento. Bons batistas não misturam igreja com Estado. Ao contrário disso, colocam o Estado em seu devido lugar, para proteger a igreja – e as liberdades.
Eu sou uma boa batista. Não tenho a menor dúvida disso. Eu aprendi com os meus ancestrais a ser uma boa batista e continuo nesse caminho, ensinando a quem vem depois de mim que as liberdades são fundamentais.
E vocês, que ousam falar em nosso nome, são o quê?
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