Recebi um link para uma “avaliação da intenção dos brasileiros em vacinar para prevenção da Covid-19”, coordenada por pesquisadora do IFF/FIOCRUZ. Comecei a imaginar os critérios adotados pelos que arriscam uma resposta negativa, imbuído de certa inquietude pelo fato de praticamente todos esses insubmissos carregarem, no braço ou no cartãozinho, marcas da prática que tanto fez avançar a saúde pública nos últimos 130 anos. Mas, garanto, esse ingênuo exercício reflexivo não vale a pena, e basta conversar sobre o tema com as cinco pessoas mais próximas que ao menos uma delas vai lhe mostrar o porquê.
Desconsiderando a introdução, esta coluna não será uma ode à vacinação e tampouco à “ciência”, seja lá a conotação que o termo ganhou no imaginário popular. Óbvio que vacinação em massa é medida urgente que há muito vem sendo tolhida por tratantes do pântano mais malcheiroso da política brasileira, mas não foi ela o primeiro alvo, em meio ao caos de 2020, de uma postura negacionista que tomou setores estridentes da sociedade brasileira. É sobre tal negacionismo que pretendo falar.
Difundir teorias alternativas – mentiras, em bom vernáculo – ou contestar superficialmente resultados de trabalhos científicos é algo que, em análise puritana, não faz sentido algum para o cidadão médio. Se algo foi feito com método, em especial pesquisas no campo das ciências naturais – mais retas e objetivas do que o emaranhado subjetivo do espírito e das ações humanas –, esse algo obedeceu a noções epistêmicas que estabelecem o grau máximo de “verdadeiro” e “falso” alcançável por cognição.
Como é razoável deduzir que a esmagadora maioria da população não se ocupa dos mistérios da epistemologia – filosofia do conhecimento –, parece que o esvaziamento da legitimidade das proposições científicas é uma mescla de confusão entre prática da ciência e seu possível uso social; e de fuga, de escape de uma realidade que não atende aos anseios políticos daquele que a está experimentando. Em outras palavras, uma mescla de ignorância e frustração.
Veja, é plausível e necessário o debate em torno de eventuais consequências socioeconômicas decorrentes de uma conclusão científica, ou seja, em torno do que se deve fazer, em termos de vontade política, após o parecer dado por microbiologistas acerca de um vírus e seu potencial de contágio, por exemplo.
Contudo, mesmo que partindo dos resultados obtidos por essa metodologia, já não estaremos mais no domínio estrito da ciência, e sim elucubrando a respeito do manejo de tais resultados numa área que pertence ao debate humanístico, com questões econômicas, jurídicas, morais e sociais – as quais não terão solução se guiadas exclusivamente pelos instrumentais científicos (pensar o oposto disso é descambar no cientificismo, doutrina baseada na extrapolação, para outros aspectos da realidade, da capacidade explicativa e preditiva das ciências sobre os fatos da natureza).
A falha em se fazer essa diferenciação seja, talvez, fruto do apreço pela especialização imoderada, pelo tecnicismo que impede a universalização do conhecimento e, assim, que estudiosos e técnicos “unam os cumes das montanhas e se entendam no que se refere aos primeiros princípios”, como dizia Mário Ferreira dos Santos. São médicos, engenheiros, farmacêuticos e advogados com antolhos.
Suponho, todavia, que muitos negacionistas saibam dessa fundamental diferenciação, o que afasta, a priori, a escusa de ignorância. Ao contrário de tempos em que a miséria material atraía multidões para bodes expiatórios fantasiosos e acessíveis, parte dos atuais setores estridentes estão razoavelmente bem acomodados nas classes média e média-alta.
Eis que, então, a frustração com o real, com o que se mostra sensível e essencialmente posto diante deles, leva tais setores a uma peleja dita “ideológica”, bizarra, com negação impensada de toda e qualquer autoridade, no sentido romano de auctoritas – não de poder, mas de prestígio e crédito que se reconhece a uma pessoa ou instituição por sua legitimidade ou por sua qualidade em alguma matéria.
Vargas Llosa destacou o fenômeno no ensaio “Prohibido Prohibir”, citando o caso em que Foucault, um dos pensadores mais agudos do seu tempo, diminuiu a recém-nascida crise da Aids para o seu amigo Edmund White, em tom de ironia, com a seguinte pérola: “Uma doença que prefere negros e gays... que perfeito para vocês, americanos puritanos!”.
Percebe? A denúncia paranoica de estratagemas delirantes – dos mais elaborados aos jacarés imunizados – apenas nos distancia do aqui e do agora e faz com que essa pretensa “investigação” não passe de insolência e artifício intelectual, dizendo muito mais a respeito da frustração do locutor que do estratagema. A negação de verdades lógicas, éticas e culturais delata a falta do meio-termo aristotélico, da prudência tomista ou do que pensadores contemporâneos chamam de “bom senso”.
E não estou pedindo, aqui, por uma postura conformista, em que nos curvamos de imediato aos discursos postos; mais do que nunca devemos ser críticos, e basta analisarmos a ortodoxia macroeconômica, que há décadas condena nosso país ao subdesenvolvimento e à periferia, para termos certeza disso. Mas, ao fazê-lo, tenhamos em mente a postura de Hamlet: “Though this be madness, yet there is method in't” (“Embora seja a loucura, há método nela”).
O autor é bacharel em Direito pela Ufes
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