Autor(a) Convidado(a)
É secretário da Fazenda do Espírito Santo e professor de Direito Tributário da FDV

Redução da desigualdade social deve guiar a reforma tributária

Reforma tributária converte-se numa oportunidade histórica de restaurar o princípio constitucional da solidariedade, por cuja sistemática violação se estabeleceram diversos mecanismos que desagregam as bases isonômicas e democráticas da tributação

  • Marcelo Altoé É secretário da Fazenda do Espírito Santo e professor de Direito Tributário da FDV
Publicado em 31/03/2023 às 12h04

Não é tarefa hercúlea enumerar as anomalias do sistema tributário brasileiro vis à vis as melhores práticas internacionais e os consensos alicerçados na literatura especializada. Elas são flagrantes, e suas implicações têm sido catastróficas para o desenvolvimento do país.

É válido, porém, nos determos um instante sobre as disfunções da atual ordem tributária sob um ângulo específico: a desigualdade social. Já não se objeta o fato de as estruturas fiscais brasileiras haverem desempenhado, historicamente, papel decisivo na conformação de uma sociedade tão desigual. E, nesse processo, duas facetas do sistema vigente revestem-se de particular importância: a cumulatividade e a regressividade dos mecanismos de tributação. Seus impactos distributivos são agudos e se exprimem no incremento da concentração de renda, solapando a pretensão de uma maior equidade social que dispensasse o Brasil do infame rol de países mais desiguais do mundo.

Nesse sentido, posto que medulares as conexões entre desigualdade social e ordem tributária, o aperfeiçoamento desta supõe a remediação dos vícios da cumulatividade e da regressividade. Nos tempos que correm, a redução das desigualdades socioeconômicas, mais que uma imposição constitucional, ergue-se como um imperativo civilizatório, devendo, por isso, se converter num farol a iluminar os debates sobre a reforma tributária.

Traduz-se a índole cumulativa do sistema tributário nacional em diversas limitações ao direito de creditamento, que dão causa a “tributações em cascata”. Em linhas gerais, reputa-se não cumulativo o regime tributário que assegura ao contribuinte o direito de se apropriar, como crédito, do montante dos impostos recolhidos nas etapas anteriores da cadeia de comercialização.

Mediante abatimento do que já foi pago, evita-se o acúmulo de resíduos de tributação ao longo das cadeias produtivas com o objetivo de desonerá-las. No ordenamento brasileiro, todavia, mesmo em se tratando de impostos que encontram na não cumulatividade um princípio estruturante, como o ICMS, descobre-se na legislação fortes restrições ao direito de crédito, a exemplo das hipóteses de aquisição de mercadorias destinadas ao ativo permanente ou ao uso do próprio estabelecimento.

Disso derivam o aumento da carga tributária e o encarecimento dos produtos, porquanto os impostos incidentes sobre o consumo têm a natureza de “tributos indiretos”, à medida que se agregam aos preços das mercadorias e têm repassado o seu encargo ao consumidor.

Daí não ser equivocado assinalar que a cumulatividade do sistema tributário brasileiro penaliza a produção e o consumo: a multiplicação de resquícios fiscais afeta as cadeias produtivas ao maximizarem os seus custos e a elevação de preços deprime o poder de compra, a prejudicar sensivelmente o consumo das famílias.

REGRESSIVIDADE

A outra crítica dirigida ao atual sistema tributário remete à sua profunda regressividade, vício congênito dos modelos que se ancoram, precipuamente, na tributação do consumo. Essa configuração faz com que os mais pobres paguem mais tributos, proporcionalmente à sua renda, do que os mais ricos, circunstância que dificulta o acesso das populações vulneráveis a bens e serviços essenciais.

No Brasil, há, ainda, o agravante da falta de transparência da carga tributária que se incorpora aos produtos, cuja opacidade impede que o consumidor discirna as parcelas correspondentes aos tributos pagos ao adquirir uma mercadoria. Engendra-se, nesse eixo, um contrassenso, porque a oneração fiscal dos produtos implica a compressão do poder de compra, em contradição com um marco de economia política que se afirma no consumo de massas.

Com efeito, a eleição do consumo como base principal de materialidade tributável acarreta severos óbices à concretização da justiça fiscal, fazendo com que o atual sistema exacerbe assimetrias socioeconômicas e regionais.

Nesse quadro, a reforma tributária converte-se numa oportunidade histórica de restaurar o princípio constitucional da solidariedade, por cuja sistemática violação se estabeleceram, no país, diversos mecanismos que desagregam as bases isonômicas e democráticas da tributação, a degenerar o sistema brasileiro numa colossal engrenagem de reprodução das desigualdades sociais.

Não obstante, da mesma substância do veneno provém o antídoto: sendo a tributação um dos principais elementos de vertebração das sociedades modernas, ao se depurá-la de suas perversões, é possível aspirar a uma progressiva reconfiguração das estruturas sociais brasileiras, para que se moldem quanto possam ao arquétipo constitucional de uma “sociedade livre, justa e solidária”.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.