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É advogado e mestrando em direito processual na Ufes

Reforma tributária para quê? E para quem?

Uma “reforma” de Estado, tal qual a tributária, que preserva uma estrutura de regressividade, significa a predileção, pelos brasileiros, por uma sociedade que esmaga os despossuídos e endossa desigualdades brutais

  • Lorenzo Caser Mill É advogado e mestrando em direito processual na Ufes
Publicado em 02/10/2021 às 02h00
Imposto de Renda
Não se fala no Brasil em desoneração do consumo aliada à criação de alíquotas de IRPF para faixas de renda mais elevadas. Crédito: Pexels

As reformas do Estado brasileiro, uma pauta historicamente forte no cenário político – em parte devido às muitas distorções que nos foram legadas pelo engessado e militarizado reino português –, voltaram a ser o monólogo parlamentar desde a derrocada socioeconômica do segundo mandato de Dilma.

Enquanto reformas de Estado – e enquadro, aqui, as reformas tributáriaadministrativa e previdenciária –, essas criações legislativas, sejam elas emendas à Constituição ou leis complementares e ordinárias, têm como pano de fundo decisões políticas de extrema significância.

Com isso quero dizer que, nessas reformas, as mudanças promovidas pelo parlamento concernem diretamente ao modelo de Estado que, em tese, a sociedade almeja; e, de modo indireto, ao próprio modelo de sociedade pensado pelos cidadãos brasileiros, aceitando-se a ideia de Estado, apesar das diversas conceituações existentes, como o conjunto de instituições que regem indivíduos agregados por cultura comum e por razoável sintonia nas aspirações materiais e espirituais. Em outras palavras, trata-se da estruturação burocrática de uma nação.

Sendo assim, as recentes propostas de reformas tributária e administrativa precisam ser analisadas sob perspectiva estrutural: o que elas realmente mudarão no papel hoje exercido pelo Estado? E em que modificarão o papel que cada indivíduo exerce como membro da nação?

Comecemos pela reforma tributária. A tributação é uma das expressões máximas da soberania de um país e sela um compromisso entre cidadão e Estado – basicamente, trata-se do meio pelo qual o primeiro viabiliza a manutenção do segundo. É consenso, atualmente – o modelo reaganiano das décadas de 80 e 90 pregava o oposto, ancorado na frágil teoria da tributação ótima –, que uma política tributária adequada deve ser pautada no princípio da progressividade, responsável por onerar mais aquele que detiver maior riqueza tributável; e esse consenso, ressalte-se, não se reduz a postulados econômicos, mas traz, muito antes, noções de equidade e juízos éticos.

Trocando em miúdos, por razões tanto pragmáticas quanto axiológicas, o sistema tributário precisa onerar aquele que tem maior capacidade de suportar tal ônus, sem descambar em práticas de confisco. É a conclusão científica de estudiosos recentes do tema, como Thomas Piketty.

Isso não ocorre no Brasil, máxime a partir do mandato de Sarney, quando foi abruptamente reduzido o número de faixas do IRPF de onze para apenas três, e a alíquota máxima de 50% para 25%, de acordo com o ótimo ensaio “Progressividade tributária: a agenda negligenciada”, de Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair.

Conquanto qualquer cidadão minimamente observador possa percebê-lo, vale insistir que o Brasil tributa em demasia o consumo – cerca de 49% da arrecadação, segundo dados da OCDE coletados em 2015 –, possui baixa progressividade no imposto sobre renda de pessoa física – isenta as rendas inferiores a R$ 22.847,00 anuais, e cobra o máximo de 27,5% para rendimentos iguais ou superiores a R$ 55.976,00 anuais – e praticamente não tributa patrimônio, como latifúndios, grandes heranças e afins. Tudo consta das “Conclusões finais” da dissertação de mestrado de Fábio Ávila de Castro, auditor fiscal da Receita Federal e Doutor em Economia pela UnB.

O resultado desse cenário: o Seu João, o megaempresário e o funcionário público de elite compram no mesmo supermercado e abastecem no mesmo posto de gasolina – e, portanto, contribuem para o Fisco da mesma forma nesse aspecto; a classe média assalariada sofre um desfalque, em sua renda, proporcionalmente muito maior ao desfalque sofrido pelos que auferem altos salários, seja por meio de carteira assinada ou de distribuição de dividendos; e as empresas, mesmo as que podem optar pelo Simples Nacional, são estimuladas a distribuir lucro o quanto antes, já que a alíquota marginal da tributação sobre a renda é salgada (IRPJ e CSLL, somados, podem chegar a 34%) e que não há tributação alguma sobre distribuição de lucros e dividendos, algo bizarro no mundo economicamente desenvolvido.

Enfim, como aponta Fabrício Augusto de Oliveira, ancorado nos mesmos dados da OCDE referidos acima, o Brasil acaba por ser, dentre as economias relevantes, o país que menos tributa renda e patrimônio como proporção da carga tributária bruta – pouco mais de 22%, enquanto a média da OCDE é de 40%.

DEBATE SUPERFICIAL

Parece óbvia a necessidade de uma reforma profunda cujo cerne seja a progressividade, certo? Mas, numa tremenda falha político-social, nunca é essa a pauta dos debates legislativos, tampouco do sarapatel histérico do submundo das redes sociais.

De um lado, temos congressistas preocupados única e exclusivamente com a divisão de receita entre os entes federativos – motivo pelo qual não temos um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) –, limitando o debate a picuinhas do já caótico sistema tributário ou, claro, aos incêndios orçamentários que precisam ser apagados; de outro, temos dunning-krugeanos, em posse de rankings nada fidedignos, denunciando a suposta existência de uma bárbara carga tributária brasileira em relação ao PIB, sobretudo se comparada à de potências continentais como Letônia, Singapura e Costa Rica.

Caros: o Brasil não possui carga tributária exorbitante; em verdade, estamos na “série B” dos países que mais tributam, ligeiramente abaixo da média da OCDE e abaixo de economias complexas e de população significativa, como Espanha, Rússia e Turquia. A título de exemplo, tributamos bem menos do que Itália e Portugal. Esqueçam o fetiche norte-americano, pois nosso modelo de Estado e de sociedade é outro – basta uma olhadinha na Constituição, gostem ou não dela.

Não se fala em desoneração do consumo aliada à criação de alíquotas de IRPF para faixas de renda mais elevadas; não se fala em redução do IRPJ+CSLL para que se institua tributo sobre dividendos, respeitando-se uma margem de isenção; não se fala em revisão radical dos benefícios fiscais, concedidos com base em critérios nada objetivos, sem contrapartidas proveitosas e que custam, hoje, R$ 351 bilhões anuais apenas à União, segundo cálculo da Febrafite; não se fala em simplificação do pagamento e da restituição de tributos, aspectos em que o Brasil é aviltante; não se fala em fortes incentivos fiscais para pequenas e médias empresas cujo objeto abrigue inovação tecnológica... fala-se, no máximo, na criação ou na ressureição de um tributo para sanar algum vácuo orçamentário, mantendo-se intacta a estrutura atual.

E, retomando o que foi dito no início do texto, uma “reforma” de Estado, tal qual a tributária, que preserva uma estrutura de regressividade, significa a predileção, pelos brasileiros, por uma sociedade que esmaga os despossuídos e endossa desigualdades brutais. Não à toa, alguns consideram o Brasil uma ex-nação.

Apenas para finalizar este tópico sobre tributação, fica, aqui, um recado para os que buscam orientar políticas públicas sob a perspectiva de fantasmas, não sob a perspectiva dos fins almejados pela sociedade – ou seja, sob uma perspectiva teleológica: esse discurso tem cada vez menos espaço.

Passou-se a ser algo tolo, por exemplo, evitar a taxação de grandes corporações multinacionais, mesmo que seja algo óbvio a se fazer, pelo receio de “fuga de capital” para paraísos fiscais: a resposta a esse tradicional vigarismo foi o acordo do G7 para estabelecimento de um piso de taxas corporativas em todo o mundo, evitando que as empresas busquem paraísos fiscais e forçando-as, assim, a pagar mais tributos nos países onde operam.

E se um governo descumprir essas normas? Sanções econômicas por parte de Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão. Já se reconhece a desnacionalização do capital como uma tragédia do mundo pós-anos 70.

No próximo sábado (9), o autor vai dar continuidade a este artigo, no qual abordará a reforma administrativa.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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