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Regra não escrita dita que o poder não comporta vácuo

Diante do terraplanismo do governo federal no trato da pandemia, Estados e municípios arregaçaram as mangas. Espaço preenchido será dificilmente cedido por quem teve que procurar sozinho suas soluções

  • Rodrigo T. Lamonato
Publicado em 13/03/2021 às 02h00
Presidente Jair Bolsonaro, em conferência no Palácio do Planalto
Presidente Jair Bolsonaro, em conferência no Palácio do Planalto. Crédito: Marcos Corrêa/PR

Uma regra não escrita da natureza humana dita que o poder não comporta vácuo. Por toda a sociedade, essa noção é bastante espraiada e clara — na ausência de quem possa exercê-lo (o poder), o vazio será preenchido por outro agente. Esta regra não escrita manifesta-se nas microrrelações humanas (família, emprego, amigos) até chegar ao plano macro das relações jurídico-institucionais (entes da Federação, governos etc.).

No Brasil de 2020, em plena pandemia, o vácuo do governo federal em normatizar protocolos nacionalmente, por manifesta recusa em aceitar a realidade, levou todos os Estados, e até municípios, a correr para – mal ou bem – regrar o enfrentamento da emergência sanitária posta.

Como toda excentricidade jurídica, deu-se à luz a mais esta jabuticaba. Em meio a uma crise de saúde sem precedentes em gerações, na esfera federal, moveu-se rapidamente a Administração para ditar o que deveriam fazer as empresas no pagamento de tributos, salários e demais obrigações, deixando o cerne, qual seja — como deveria portar-se a sociedade, num deserto de esclarecimento.

E, no campo das informações, o vácuo também não prospera. Ausente uma diretriz nacional sobre o que era real, necessário e esperado, proliferaram, e seguem triunfando, as mais variadas indicações, temores, boatos e crendices: de ozônio a microchips embutidos em vacinas, passando pela indicação de vermífugos.

O mesmo verifica-se no espectro normativo. Brasil afora, tem-se a mais variada sorte de procedimentos para restaurantes, salas de cinema e locais de circulação de pessoas. Viseiras, máscaras, luvas ou todos deles juntos. Um metro, dois metros, um metro e meio. Mesas em local aberto, mas proibidas em calçadas. Bares funcionando e pessoas de bolhas diferentes confraternizando sem o menor pudor em enxergar que a mistura de esferas de convívio segue potencialmente explosiva para a disseminação do vírus ainda não debelado.

Festas clandestinas – que até exploram este nome em sua publicidade (pasme você), seguem proliferando. E o relaxamento ou não no funcionamento dos mais diversos estabelecimentos seguiu então a lógica local da política-miúda. Saiu-se “melhor” o setor mais articulado com o poder local. Tudo isso porque cada ente foi deixado a legislar em caráter precário sobre tema de relevância nacional com indisfarçado boicote do ente máximo sobre as mais diversas cautelas necessárias.

A letra da Constituição Federal, em seu art. 24, XII, regra sobre legislar em matéria de previdência social, proteção e defesa da saúde: competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. Contudo, em tempos de negacionismo escancarado, vê-se, e viu-se até aqui, postura diuturna de negar a gravidade da situação pelas autoridades federais. Não é preciso ir adiante em relatar o sabido.

Passados 12 meses do que poderia ter durado cinco, e vendo o noticiário trazer alvíssaras notícias sobre a retomada gradual da vida dita normal, e da economia, em países com a vacinação em estado adiantado, inquietam-se os governadores, uma vez mais, diante da omissão federal. São Paulo por meio de seu governador, mais por cálculo político, decidiu, desde cedo, antagonizar com o governo federal, assumindo protagonismo e editando normas como o Plano São Paulo – Decreto 64.881/2020. Mais recentemente, o mesmo mandatário decidiu correr ao centro da arena e iniciar a vacinação com todos os holofotes possíveis.

Em pânico, surgiu então, trôpego, o governo federal buscando “na marra” centralizar as iniciativas na busca por liderança e protagonismo. O movimento foi recebido com choque, e os demais Estados viram-se numa situação juridicamente confusa – a União que até então seguiu pela via do terraplanismo ao minimizar a situação, ultrapassada pelos acontecimentos e em dado momento com as bravatas de sempre, vociferou com a possibilidade de confisco de vacinas.

Judicializada, a questão foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal, assegurando aos Estados, municípios e Distrito Federal a autonomia em realizar suas próprias campanhas de vacinação.

Mais uma vez, nos vemos diante da máxima sobre poder e vácuo. Mas não há fórmula mágica a equacionar o mais novo problema – preenchido o vazio, como colocar de volta o gênio dentro da lâmpada? Como regrar o que nunca foi feito por quem deveria e convencer Estados e seus governadores a aceitarem a liderança de quem até aqui apenas negou a realidade dos fatos sob o manto de grossa chuva de desinformação? O espaço preenchido será dificilmente cedido por quem teve de arregaçar as mangas e procurar sozinho suas soluções.

O autor é advogado, gerente jurídico, pós-graduado em Direito do Trabalho pela PUC (SP), com extensão em Contratos pela FGV (SP) e Compliance pelo Insper

* Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta

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