Ironicamente, embarcaram presos, rumo ao desterro, no próprio porto que haviam construído, em Vitória, para escoar a produção agropecuária que viabilizaram em seus gigantescos empreendimentos nas terras capixabas ao longo de dois séculos de protagonismo socioeconômico e cultural por aqui.
Segundo Basílio Daemon, o dia era 7 de dezembro 1759 e eram 19 os jesuítas aprisionados no Estado, cumprindo-se a ordem do rei de Portugal D. José I, sombreado pelo Marquês de Pombal, para expulsão dos “soldados de Cristo” do reino e de suas possessões, assim como o sequestro geral de todos os bens da Companhia de Jesus.
Foram-se os poucos e engenhosos religiosos, restaram os vestígios da vasta obra. Assim, um dos marcos mais significativos da indelével presença dos Jesuítas no Espírito Santo acaba de ser restaurado e revitalizado. Trata-se do conjunto arquitetônico de igreja e residência de Nova Almeida, na Serra, que, após as obras, passou a constituir o Centro de Interpretação da Aldeia de Reis Magos.
Aberto à visitação pública, o edifício abriga relíquias, como um quadro considerado a pintura a óleo sobrevivente entre as primeiras feitas na América Portuguesa, “Adoração dos Reis Magos”, de autoria do irmão jesuíta Belchior Paulo, datada de 1598. Ela pode ser contemplada no centro de um majestoso retábulo de madeira esculpido pelos indígenas, instalado no altar-mor da igreja.
O aldeamento, no contexto da colonização portuguesa, foi oficialmente autorizado por São José de Anchieta em 1585, quando era superior da Companhia de Jesus no Brasil. Após a expulsão dos Jesuítas, a igreja e suas dependências paroquiais passaram ao clero secular e à administração pública (sala de sessões da Câmara, delegacia, cadeia e local de hospedagem do juiz em serviço na vila e de visitantes ilustres, como o imperador Dom Pedro II, que pernoitou no local em 1860).
O local foi tombado em 1943 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Trata-se do conjunto arquitetônico jesuítico mais bem conservado com relação a suas características originais, no Espírito Santo e no Brasil, agora revitalizado por iniciativa do Instituto Modus Vivendi, liderado por Erika Kunkel Varejão, com o apoio da Vale, EDP, Biancogres e BNDES.
A primeira restauração do Palácio Anchieta, originalmente igreja, residência e colégio jesuíta, realizada entre 2004 e 2009, abriu o caminho para que o Espírito Santo desse os primeiros passos na constituição de um roteiro jesuítico em terras capixabas, revitalizando lugares de memória decisivos para a formação do Estado nos séculos iniciais da ocupação portuguesa.
Nesse sentido, em 2021, em Anchieta, foi entregue o Centro de Interpretação São José de Anchieta, juntamente com a restauração de todo o Santuário Nacional, construído a partir de 1579, por iniciativa do “Apóstolo do Brasil”, na antiga Vila de Reritiba, lugar onde o santo também viveu e faleceu, em 1597.
O próximo passo desse roteiro de memória e identidade capixaba será a entrega do Centro de Interpretação da Fazenda de Araçatiba, em Viana. Nos mais de dois séculos de presença da Companhia de Jesus no Espírito Santo, os Jesuítas foram os maiores proprietários de terras na capitania, sendo a Fazenda de Araçatiba a maior de todas as suas diversas propriedades, com cerca de dois mil alqueires, indo da primeira cachoeira do Rio Jucu, no interior, até o litoral, hoje município de Vila Velha.
Por via fluvial, terrestre e marítima, a produção de Araçatiba chegava a Vitória, onde os Jesuítas tinham um porto privativo, o “Porto dos Padres”. Tratava-se de um complexo logístico sofisticado à época, que incluía um canal idealizado pelos religiosos, na primeira metade do século XVIII, conectando os rios Jucu e Marinho.
Essa obra, executada por indígenas e considerada pioneira no Brasil na engenharia de transposição de águas entre bacias hidrográficas, consolidou um canal de cerca de 12 quilômetros, que permitia a navegação direta entre os domínios da Fazenda de Araçatiba e a baía de Vitória, evitando-se o transporte de cabotagem a partir da foz do Rio Jucu.
Como salientamos, ironicamente, o porto privativo, um dos mais relevantes símbolos do poder jesuítico no Estado, foi o mesmo que deu início à jornada de exílio dos religiosos por aqui. Mas, seguindo os lemas dos inacianos, que “partiam para nunca mais voltar”, com vistas a “construir uma obra que durasse enquanto o mundo durasse”, com idas e vindas, o marco jesuítico persiste entre nós.
O restauro e a revitalização dos conjuntos arquitetônicos estabelecidos pela Companhia de Jesus constituem uma ímpar oportunidade para conhecermos o que fomos, pensarmos o que somos e projetar o que desejamos ser como capixabas, com nossos desafios, dilemas e potenciais. Afinal, como escreveu Paul Valéry, talvez “a história não dê muita margem à previsão, mas, associada à independência do espírito, ela pode nos ajudar a ver melhor”.
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