A tragédia humanitária que acomete todo o Estado do Rio Grande do Sul nos mostra que alguns de nós não podem ser chamados de humanos. Assim como se viu em outras situações de catástrofes, pessoas se aproveitam de um momento de desespero e vulnerabilidade extremos para cometerem crimes.
Mais uma vez vemos que furtos, saques e roubos estão sendo realizados em meio à dor e ao luto. Até barcos utilizados no resgate de desabrigados estão sendo subtraídos.
É impossível explicar para alguém de bom senso como pessoas conseguem se aproveitar da tragédia para extrair do outro o pouco que lhe sobrou. Pessoas que perderam praticamente tudo estão sendo vítimas de crimes cometidos, não raro, por quem não precisa fazer isso.
Lembremos que vários estelionatários estão se aproveitando desse momento de tristeza para o cometimento de incontáveis golpes.
Como ocorre uma nova onda de crimes, as autoridades públicas são obrigadas e deslocar policiais para combater e prevenir tais condutas, em um momento em que esses mesmos agentes estatais poderiam estar trabalhando em favor dos desabrigados ou à procura de desaparecidos.
E esses casos vergonhosos não são exclusividade do Rio Grande do Sul. Na situação da paralisação por vinte e um dias da polícia militar no Espírito Santo, em fevereiro de 2017, ocasião em que ocorreram crimes graves diversos, inclusive, 219 homicídios, vários “cidadãos de bem” foram flagrados saqueando estabelecimentos comerciais na cidade de Vitória e em outras regiões do interior.
Mais uma vez fica claro que o crime é o resultado do livre arbítrio e não uma consequência lógica da ausência de oportunidades e da exclusão social. O criminoso faz uma análise matemática ao escolher delinquir, analisando ônus e bônus. O criminoso pondera. O criminoso pensa antes de decidir. Suas escolhas são racionais.
Como todos sabem que as consequências jurídicas para o cometimento de um furto são mínimas, surge, nesses momentos de calamidade e de tristeza, o “incentivo” para subtrair do outro o pouco ou o quase nada deixados pela força das águas.
Já é hora de pensarmos em incluir o furto cometido em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido, no rol dos crimes hediondos, na forma da Lei nº 8.072/90, a qual, desde 2019, a partir do “pacote anticrime”, já classifica como qualificado o furto cometido com o emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum, nos termos do artigo 155, § 4º-A, do Código Penal.
Com essa mudança, o crime de furto cometido nas situações de calamidade pública receberá um novo tratamento, a saber: a) tornar-se-ão insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança; b) a prazo máximo da prisão temporária passará de cinco para trinta dias; c) a pena será cumprida inicialmente em regime fechado; d) em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade;
e) aumento do prazo de cumprimento da pena para a obtenção do livramento condicional; f) aumento do prazo de cumprimento da pena para o alcance da progressão de regime.
Faz-se necessário que a resposta estatal a essa conduta de inexplicável reprovabilidade humana passe a receber uma sanção proporcional e adequada, contribuindo para inibir a prática de novos delitos (prevenção geral).
Importante anotar que, em agosto de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 643/2020, de autoria do deputado federal Junio Amaral (PSL-MG), tornando qualificado o crime de furto cometido em “ocasião de incêndio, naufrágio, inundação, desastre, qualquer estado de calamidade pública, epidemia ou pandemia declarados pelas autoridades competentes”.
Como essa qualificadora, o crime de furto, que possui uma pena de reclusão de um a quatro anos, passará e ser penalizado com uma sanção restritiva de liberdade de dois a oito anos. A proposta foi encaminhada ao Senado Federal e, desde 17.03.2023, espera a designação de um relator junto à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Essa mudança que aguarda análise pelo Senado Federal ainda é tímida. Como forma de evitar que a mensagem do “vai dar nada não” se propague, sugerimos que a pena mínima do crime de furto cometido nas circunstâncias de calamidade pública seja superior a quatro anos, de modo que sejam vedadas todas as possibilidades de transação ou acordos com o Ministério Público.
No Brasil ninguém, absolutamente ninguém, fica preso pelo cometimento de um crime de furto. Trata-se de uma medida de política criminal que entende pela desnecessidade de segregação em relação a tais delitos. De outra sorte, os furtos (saques egoísticos e irresponsáveis) cometidos em situações de calamidade pública, como a que devastou o Estado do Rio Grande do Sul, merecem uma reprimenda estatal condizente com a reprovabilidade dessa conduta.
Sabemos que a sanção penal possui duplo efeito: repressivo e preventivo. O primeiro guarda relação com o princípio da retributividade, decorrente do jus puniendi, que é o poder-dever pertencente ao Estado de aplicar a lei aos casos de violação da norma incriminadora. Já o efeito preventivo, como o próprio nome sugere, tem o condão de evitar a prática de novos delitos, a partir daquilo que chamamos de “prevenção geral”, ou seja, se “A” comete um crime e é devidamente punido (com o respeito de seus direitos fundamentais, por óbvio), essa “mensagem” é automaticamente repassada à sociedade, por meio de seus microssistemas (bairros, núcleos familiares, condomínios, escolas, entre outros), fazendo com que os demais cidadãos passem a melhor refletir antes de decidirem praticar um crime.
É preciso refletir: a quem queremos proteger?
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